quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

UM CASAL ARGENTINO

Nas últimas semanas Silvio chegava do trabalho cada vez mais verde. Foi esverdeando aos poucos, mas sua cor de Shrek se intensificava a olhos vistos. Quando eu tentava qualquer tipo de contato, sempre me respondia com um linguajar de ogro, em monossilábicos grunhidos, muitas vezes ininteligíveis. Eu, de minha parte, não assumi minha porção princezinha ogra, verde e feliz. Não. Estava muito mais para o burrinho da história. Sempre muito alegre e otimista, cantarolando, sapateando e repetindo: “Como posso te ajudar? Como posso te ajudar???” Nos raros momentos de lucidez, em que eu deixava de rodopiar a volta do ogro amado, ia lhe dizendo com muito cuidado: “Cê tá cansado. Tá precisando de férias. Ninguém é máquina.” Ao que ele respondia em fluente e exaltado ogrês: “Não dá para tirar férias agora! O projeto...”
Num sábado consegui tirá-lo de casa e fomos caminhar na redoma de Valle Arriba. Meu lugar de caminhada. Vista bonita, flores e um platô que me livra de subir e descer ladeiras. Entre um longo silêncio e outro, me disse que queria passar uma semana em Morrocoy. Leia-se, em um parque nacional no Caribe venezuelano. Um arquipélago com muitas ilhas pequenas e desertas, mangues e águas transparentes. Não pedi que repetisse a declaração. Cheguei em casa e ativei todos os meus contatos para organizar a viagem. Sonia havia me falado de uma pousada, La Ardileña, onde havia passado dias fantásticos.
Em uma semana estava tudo organizado. Contato feito com a pousada, reservas feitas e pagas. Só ainda as malas por fazer.
Uns dois dias antes da viagem, comecei a sentir dor de garganta, mas não fazia mal, nada que muito própolis contrabandeado do Brasil não pudesse curar. O importante era sair.
Na véspera da viagem, enquanto fazíamos as malas, discutimos por causa das datas de ida a Porto Alegre, onde sempre passamos as festas de fim de ano. Resultado: saímos no dia seguinte de Caracas, debaixo de muita chuva, eu muito gripada e ambos super emburrados.
O percurso, de mais ou menos quatro horas, foi feito em três etapas: a) chuva e silêncio sepulcral; b) tempo nublado e ainda sujeito a muitas intempéries e, finalmente c), com a chegada à pousada, muito sol e puro encantamento.
O lugar era lindo, as pessoas solícitas, nosso quarto aconchegante, águas tranqüilas. A tarde foi caindo e do cais, enquanto tomávamos um trago, podíamos ver o mar mudando de cor. De verdes e azuis, passou a vermelhos-por-de-sol, até chegar ao mais perfeito prata-luar.
O jantar foi servido também no cais e vimos que além dos hóspedes havia um casal que passeava entre as mesas, falava com todos. Com certeza eram os donos da pousada. Falaram com a gente também e pelo chiado forte do sotaque dava para ver que não eram venezuelanos. Conversa rápida, mas foi empatia à primeira vista.
Na noite seguinte, enquanto jantávamos, os dois foram se chegando e pediram permissão para sentar em nossa mesa. Em poucos minutos já estávamos íntimos. Andres e Clara eram argentinos, já muito entrados nos sessenta. Começamos falando da pousada e aos poucos a vida dos dois foi surgindo como um filme para nós. Trilha sonora de Piazzola. Andres falou de sua saída da Argentina na década de 70. Ele, professor universitário, fugindo de seu país e buscando exílio na Venezuela. Pobres professores, com o seu saber incômodo e inócuo. Nos contou de seus sonhos perdidos. Da angústia de estar longe de Clara e dos filhos pequenos que ficaram para trás até que ele conseguisse se firmar em Maracaibo. Falou de seus colegas professores venezuelanos que os ajudaram muito (coisa de venezuelano) e do medo que se sente quando se tem de começar do zero em terras estranhas. Clara foi se inserindo na narrativa e pontuava a fala do marido com seu olhar feminino. Contaram dos filhos que nasceram argentinos, mas que se criaram venezuelanos. Falaram da angústia da filha que, já adulta, teve de voltar a Buenos Aires para descobrir que já não pertencia àquela terra. E que hoje tem uma família e uma carreira de muito êxito na Espanha. Contaram do filho que vive entre a Venezuela e os Estados Unidos, excelente comerciante.
Andres, que tinha estado doente, pediu ao garçom para nos trazer um vinho tinto argentino e brindamos à vida. Clara comeu e bebeu pouco, não queria engordar.
Frases, sonhos, recordações iam se misturando. Ele começava uma história, ela a terminava. Às vezes, sorriam cúmplices. Saboreavam lembranças. O amor tem dessas estripulias.
Contaram que, quando ele se aposentou, tinham comprado aquele pedaço de terra para fazer a casa de encontro da família. Não tinham intenções comerciais. Era onde iriam ter os filhos e netos juntos. Clara nos disse do prazer de morar em um trailler por algum tempo, enquanto construíam a casa e Andres complementou, falando da noite de insônia do filho, quando surgiu a idéia de se fazer, ali, uma pousada.
De repente olhei para Silvio e percebi que o esverdeado da pele estava dando lugar a um bronzeado ainda tímido, mas com potencial.
Foi uma noite perfeita. Cheia de histórias e recordações. Contavam suas aventuras com a boca, mas a eloqüência estava no brilho em seus olhos. Vimos fotos, conhecemos os filhos e netos.
Os dias que se seguiram foram de muita praia, passeios de lancha, comidinhas maravilhosas. Andres e Clara estavam sempre ocupados. Estavam preparando a casa para o Natal, para os filhos e netos que logo chegariam. Silvio foi recuperando sua capacidade de articular palavras em português e espanhol e a cada dia ficava mais bronzeado.
Quando estávamos indo embora, Clara nos chamou para conhecer a parte da pousada que era a casa deles e me deu de presente velas aromatizadas. Para Silvio, Andres deu um vinho tinto, Malbec da região de Mendonça.(Bairrismo argentino?) Nos despedimos prometendo voltar logo.
Quando já estávamos saindo de carro, já no portão, ouvimos Andres gritar. “Voltem mesmo, mas lembrem, nada de falar de futebol!”

5 comentários:

monica disse...

Oi Patricia,

Emoções...

Beijo grande,
Mônica

Alzira Willcox disse...

Nada como uma linda paisagem e companhias agradáveis para recuperar a cor e o frescor!
Espero que os festejos de fim de ano no Brasil tenham sido bem coloridos.
Bj

Lúcia disse...

Olá Patrícia, como é bom ler suas estórias...
A Elza já havia comentado sobree esse seu talento.
Adorei a pousada, mesmo sem conhecê-la.
Também gosto de escrever, mas ainda sou tímida nesse campo, escrevo para mim somente, rs. Já participei de 3 concursos de contos, mas ainda falta essa coragem para publicá-los. Vou ficando com a pintura por enquanto, mas eu chego lá.
Um grande abraço para você,
Lúcia

Bia Veiga disse...

Como é bom ler suas histórias. Fiquei algum tempo sem vir aqui, mas gostei tanto dessa sua viagem, da história do casal argentino e de vocês nas pequenas férias. Que delícia e como você é engraçada!
bjs e bom ano!!!!

Elza Martins disse...

Patrícia, Bia e Lúcia:

Fico muito feliz em ter possibilitado este encontro de vocês. Três pessoas especiais que, certamente vão agregar valor umas as outras assim cmo fazem comigo.

Adoro as três.