sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

HONOLULU

Não sei o que está acontecendo, realmente devo estar sem inspiração. Nestes últimos dias é como se não me permitissem falar sobre a Venezuela. Sei lá... Acho que o Ávila está me exigindo um voto de silêncio.



Então, como não vai sair nada sobre a terra, me debruço sobre outras histórias. Sobre antigas histórias. Como aquela em que, acidentalmente, passei um dia em Honolulu.



Só mesmo um artista como Lulu Santos poderia dizer... “O Havaí é aqui...”. Nada disso. O Havaí não é aqui, nem ali e nem acolá. É muito mais longe... de qualquer lugar.



Silvio me avisou “Vai ter um congresso em Mauí e eu fui indicado para ir. Viajamos daqui a quinze dias”. MAUÍ!!!!????!!!!!!! HAVAÍ!!!!??????!!!!!! Fiquei exultante, nunca podia imaginar. O Havaí era AQUI!!!!



Mas não era bem assim. Não era tão aqui assim. A viagem começou com um vôo Caracas / Atlanta. Cinco horas. Seguido de outro Atlanta / Los Angeles. Mais umas cinco horas. A seguir um Los Angeles/ Honolulu. Nada menos que sete horas. Para encontrar seu clímax em um voozinho rápido Honolulu / Maui. Uma coisinha básica de trinta minutos.



Partimos com um céu de brigadeiro que foi nos acompanhando por todo o caminho. Vôos tranqüilos e muitas horas. O brigadeiro foi nosso companheiro até quase aterrissarmos em Honolulu, mas aí parece que houve mudança de turno e quem assumiu deve ter sido um sargentão brabo. A noite caiu e a chuva também. Chegamos a Honolulu já por volta das nove horas da noite (de lá, não considerando todos os fusos horários por que passamos). Chovia muito e ainda tínhamos que encontrar onde fazer o check in para Maui. O aeroporto não era grande, mas comprido o suficiente para descobrirmos, depois de muito perguntar, que o nome da companhia aérea mudava ao longo de seu trajeto. Me explico. Desembarcamos por um portão onde se podia ler indicações da MESA AIRLINES, mas a medida que nos afastávamos procurando o seu balcão, as indicações iam se esvaecendo, como num passe de mágica. O tempo passava, a chuva continuava a cair e tínhamos a angustiante sensação de que iríamos perder o vôo. (Uma nota se faz importante aqui. O Havaí faz parte do território americano só nos mapas, pois os havaianos não poderiam ser mais caribenhos. Também são leeeeentos.). Decididamente íamos perder o vôo, até que um senhor moreno, baixinho, gordinho e de camisa bem colorida nos informou que a MESA era a GO e que já tínhamos passado por seu balcão.



Foi o gatilho para que despencássemos pelo aeroporto, com malas e maletas. Só não tínhamos pranchas de surf, mas estávamos carregados.



Passamos pelo check in correndo, corremos pelo pátio e, finalmente, entramos no avião... Está bem, aviãozinho. Chovia. Forte. Enquanto rezávamos para que nossas malas tivessem sido levadas para o compartimento de bagagem, tomávamos conhecimento de onde e com quem estávamos. Nossos companheiros de viagem eram jovens, modernos, sarados, surfistas. Havia também umas maletas e algumas pranchas (acho que no Havaí são consideradas como bagagem de mão). Tudo parecia levemente escuro e razoavelmente apertado. Chovia. Forte.



Enquanto esperávamos para levantar vôo, o casal ao nosso lado decidiu se apresentar. Talvez porque os quatro fossemos os únicos não surfistas do pedaço. Eram do Equador e ele tinha uma firma de esportes radicais. Essa coisa que os departamentos de Recursos Humanos fazem agora com os pobres executivos que, além de terem de dar resultados custe o que custar, ainda têm que passar alguns dias escalando montanhas e cruzando rios para mostrar a seus chefes que têm uma grande sinergia com os seus pares e que são capazes de enfrentar as piores crises com alegria e destemor. Pois é, o equatoriano era dono de uma dessas firmas. Enquanto nos apresentávamos, os motores foram ligados e surgiu ela... a aeromoça. Era jovem. Não tinha mais que dezoito anos. E depois de fazer a famosa dança ritual que todos os comissários de bordo fazem no inicio dos vôos (saídas de emergência, cinto de segurança, máscaras de oxigênio...), se sentou em seu banquinho, de frente para os passageiros e levantamos vôo. Chovia. Forte.



E foi depois de uns cinco minutos, em pleno ar, que ouvimos aquele barulho. Seco. Intenso. Muito alto. Metal contra metal. Parecia que vinha do chão, mas era difícil definir de onde. A única certeza era que piorava cada vez mais. O nosso amigo dos esportes radicais começou uma reza forte. Se persignava e rezava. Os outros passageiros ainda tentaram levar na brincadeira, mas quanto mais o barulho aumentava, mas gente começava a pedir informações a pobre aeromoça que continuava amarrada a seu assento.



Quando falo de barulho, não estou falando de um chacoalhar, um tamborilar, uma trepidação. Nada disso. Era como se o chão fosse se desprender da fuselagem e fossemos todos, turistas, surfistas e pranchas, ser arremessados na escuridão.



Silvio, como sempre tranquilo, me disse que poderia ser problemas no trem de aterrissagem. Olhei para fora. A noite. O mar. E a chuva. Forte.



O piloto não falava nada. E foi então que a aeromoça decidiu se levantar e foi falar com os passageiros. Explicou que não sabia o que estava acontecendo e que nestes vôos nem ela podia falar com o piloto, mas que ficássemos calmos... PÁ! Um barulho mais forte e um solavanco. Ela pulou, os passageiros gritaram e o equatoriano dos esportes radicais pirou. Rezava em voz alta, se benzia e mantinha os olhos assustadoramente esbugalhados com a expressão típica de quem pensa: !Estoy jodido!



A aeromoça, sem fazer nenhum contato com o piloto, tomou uma atitude. Decidiu entregar coletes salva-vidas para as crianças. Aí fui eu que paniquei, pois Silvio não sabe nadar.



Novo solavanco e a jovem entregou os pontos. Foi passando de fila em fila sussurrando com a confiança de uma comissária experiente: Vamos rezar. Vamos rezar.



Não sei se foi a nossa reza ou a do equatoriano, mas o fato é que o barulho passou. Silvio então comentou: Viu? O trem de aterrissagem encaixou. E quando pensávamos que íamos chegar sãos e salvos a Maui, o piloto fez uma curva de cento e oitenta graus. Parecia que estávamos voltando.



E estávamos.



Quando vislumbramos o nosso ponto de partida, as pistas estavam cheias de carros de bombeiros e de homenzinhos prateados. Fomos nos aproximando e o medo agora era de que o trem de aterrissagem não saísse. O aviãozinho descendo e os bombeiros em alerta máximo. Mas de repente... PLUM! O trem saiu e aterrissamos sem maiores problemas. O equatoriano radical quase desfaleceu entre preces. Chovia. Forte.



Enquanto saíamos, a aeromoça tentou manter a pose e sorrir. O piloto não. Ao sair de sua cabine, estava lívido.



No aeroporto, houve como que uma confraternização entre os passageiros e foi então que Silvio me disse que haveria um outro vôo para Maui à uma da manhã. A minha reação foi serena, segura e até que achei bem madura. Soltei um palavrão e com firmeza disse que não levantava mais vôo naquele dia, nem à força. Ele entendeu a mensagem. Voltou ao balcão e com rapidez conseguiu hotel e um vôo para o dia seguinte, de tarde.



Ainda chovia em Honolulu de manhã, mas nada que pudesse atrapalhar nosso dia acidental na ilha. O sightseeing começou em Waikiki Beach e terminou em Pearl Harbor. Com direito a paisagens inesquecíveis.



À tarde, embarcamos para Maui com céu de brigadeiro. Maui... Ah! Maui... Bem, mas isto já é uma outra história.




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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ESQUINAS DE CARACAS


Tenho que admitir, o terremoto no Haiti mexeu comigo. Nestes últimos dias, as imagens e as noticias que chegam de lá têm me relembrado algo em que não gosto de pensar: a precariedade do ser humano. (Levei anos de análise para lidar com isso. Eu, leonina e levemente controladora.).



É claro que há milagres e o terremoto também mostrou que a gente tem a hora certa de ir, ou talvez, alguns tenham um desejo mais forte de ficar. Sei lá...


O fato é que, apesar de Caracas continuar bem agitada, com convocatórias de marchas e manifestações de ambos os lados para este 23 de janeiro, me sinto sem gás e sem assunto.


Foi então que pensei em escrever sobre um livro que li há algum tempo: Las Esquinas de Caracas.


Como já disse algumas vezes, a maioria das casas da cidade não tem numeração e, para encontrar um edifício é preciso saber o seu nome e perto de que marco histórico ou arquitetônico ele está. Acho que isso reflete uma verdade cultural, pelo menos da cidade (não sei se de todo o pais). Caracas é um lugar de nomes, palavras, muito mais que de números. Caracas é uma cidade em Word e não em Excel. Isso se reflete na atitude das pessoas. Fala-se muito, mas na hora de se fazer as coisas, botando tudo na ponta do lápis, sacando las cuentas (como dizem por aqui) aí eles ... começam a falar de novo.


Mas voltando às esquinas...


A cidade começou bem organizadinha, um quadrado dividido em calles e manzanas, isto é, em ruas e quarteirões (por muito tempo não entendi o que tinha a ver ruas com maçãs). Estamos falando dos idos de 1578. Com o crescer do lugar e com o passar dos tempos, havia que se determinar, imagino, pontos de encontro, por exemplo, e foi assim que as esquinas começaram a ganhar seus nomes. Não é como no Brasil, esquina da Rio Branco com a Sete de Setembro, não. A esquina tem seu próprio nome e o livro trata exatamente disso. Cada capítulo explica como foi dado o nome a cada esquina. Cada capítulo é uma deliciosa história de fantasmas, nobres, piratas, sovinas, freiras e padres, comerciantes, soldados, santos e mais santos e muita persignação.


A única esquina que conheço (passo por ela quando vou à Candelária de Metro) é La Pele el Ojo, isto é, a do Olho Vivo, no sentido de atenção, cuidado com o perigo. Não é a toa que ela fica em frente a uma outra que se chama El Peligro. “El Peligro fue esquina oscura y azaroza”, narra Don Santiago Key, mas um dia, surgiu na outra esquina um bodegueiro que dizia não temer a nada nem a ninguém. Quando decidiu abrir sua bodega, queria um nome chamativo que atraísse a clientela e, depois de muito pensar, pintou em letras gordas e negras a placa de seu estabelecimento: “Pele el ojo al Peligro”. O livro não esclarece se os assaltos melhoraram na região, mas informa que por volta de 1856 El Peligro era um lugar onde pastavam tranqüilamente algumas cabeças de gado. É, o lugar ficou bucólico e pastoril. Aí está, o poder da palavra!


Outra história que eu adoro é a da Esquina de Las Ánimas, ou esquina das almas. Preciso explicar o porquê? Imaginem uma Caracas do início da colônia, una ciudad oscura, donde apenas si en las casas principales, allá em la Plaza de Armas, existían algunas pequeñas luces alimentadas con sebo. E era neste cenário que se podia ouvir el grito del sereno: La una há dado...Tiempo nublado..., soava a frase do faroleiro. E, nesta cidade, também na região da Cadelária, havia uma esquina onde se podia ouvir el rosario de las ánimas, um cântico fúnebre, monótono, modulado por vozes que pareciam sair das entranhas da terra (!!!!!). Quem tentava enfrentar estas vozes nas altas horas da noite era punido com muito susto e pavor. É verdade que o próprio livro também informa que estas vozes do além poderiam ser vindas de gargantas mais humanas e ... mais profundas(?) Podiam ser o canto de pecadoras que saiam em procissão nas altas horas escuras, rezando suas orações para fazer penitência. Quem poderá saber a verdade? O fato é que o nome pegou e não me convidem para um passeio pela região depois do cair da tarde.


Há muitas outras esquinas e muitas outras histórias: a da Torre, das Monjas, dos Mercaderos, dos Jesuítas... A do Cristo al Revés, reafirma a nossa tradição de botar os santos de cabeça para baixo para conseguirmos algo deles. Por falar nisso, as moçoilas venezuelanas também põem Santo Antonio de ponta-cabeça quando querem achar um bom partido.


E, por falar em Cristo, há também La Esquina de El Cristo. Sua história começa em los tiempos em que los pobres y amedrentados habitantes de la vieja Santiago de León de Caracas no tenían paz nem nas ruas, nem em suas casas. Um tempo de histórias escalofriantes (adoro esta palavra). Nesses tempos, em uma esquina distante e isolada, apareceu um nicho com a imagem do Cristo. Ali eram feitas festas para celebrar a imagem e a cobriam de flores. Isto se fazia em memória a uma lenda que corria entre os vizinhos. Contavam que ali el diablo estuvo suelto por algún tiempo na figura de um bodegueiro a quem todos temiam. Era ladrão, era mau. Por muito tempo o bodegueiro fez suas ruindades, até que um dia um vizinho creyente y temeroso pediu ajuda a seu confessor. Foi o padre que o aconselhou a colocar um Cristo na esquina. E assim o fizeram, ele e os demais moradores. E conta a lenda que, depois daquele dia, el diablo dejó de atormentar a los vecinos.


Lendas, histórias, palavras. Mantras, rezas e orações. Talvez seja desse magma que sejamos feitos todos nós, pobres mortais. Por mais que saquemos nuestras cuentas, por mais que queiramos ser precisos como uma planilha em Excel, somos frágeis e precários como uma lenda qualquer. Somos feitos de carne, ossos e palavras... Nossas histórias.


No Haiti, a igreja onde estava a Dra. Zilda Arns caiu por inteiro soterrando vidas, sonhos, palavras... Só ficou de pé a imagem de um Cristo. Como uma lenda.


Enquanto o mundo se mobiliza em ajuda, a imagem observa em seu altar de escombros.


Que este Cristo possível abençoe às almas e aos homens, precárias lendas, palavras perdidas nesses desvãos e esquinas a que chamamos vida.






(Informações in Las Esquinas de Caracas de Carmen Clemente Travieso, Los Libros de El Nacional)

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

UN GUAYOYO GRANDE


Logo que cheguei a Caracas tive muita dificuldade para me adaptar ao café daqui. Eu que sou louca por um pretinho básico simplesmente não conseguia tomá-lo. Achava a bebida forte demais, amarga demais. Era como se seus grãos fossem muito queimados ou pior, fossem torrados ainda verdes. Como tomo café cowboy, isto é, puro e sem açúcar, fico exposta a todas as suas nuances, seus detalhes e sutilezas. Resultado, fiquei abstemia por quase seis meses. Mãos trêmulas, delírios e muita saudade de um bom café passadinho na hora.



Os venezuelanos tomam muito café. Ao final de uma refeição em um restaurante te oferecem: un expreso ou un capuccino ou un negro (que pode ser grande y fuerte ou pequeño) ou un marron ou con leche ou un guayoyo. Não me adaptei a nenhum dos tipos conhecidos e de inicio não quis arriscar experimentar os desconhecidos (mas o que seria un guayoyo?). Em casa, trocava de marcas e tentava me entender com a cafeteira que Silvio tinha me dado. Uma do tipo italiano, mas que aqui chamam de griega (!?!). Nada. A bebida continuava amarga e com um gosto esquisito (no sentido brasileiro da palavra).


Até que um dia, em desespero, arrisquei novos sabores. Mesonero, un guayoyo, por favor. Grande? Me respondeu o garçom e eu por precaução arrisquei. No, no. Pequeño.


E foi então que descobri que o guayoyo é o nosso carioca. Mais fraco que o expresso e se bem feito tem gosto de passadinho na hora. É bem verdade que nos restaurantes, se você pede um guayoyo, estará exposto às mais variadas gradações, desde um carioca perfeito a um regular coffee bem americano. O nosso chafé. Mas não fazia mal, o sabor me agradava e tinha aprendido a pedir um tipo de café que não me deixava enjoada.


Em casa, com o passar do tempo fui buscando a quantidade certa de pó para fazer un guayoyo em minha griega. E funcionou! Posso fazer meu próprio guayoito, ou mehor ainda, quando Beatriz chega às terças e quintas, tem como primeira tarefa do dia preparar minha tasa de café. Ela faz um guayoyo perfeito.






Um mês fora de casa. Rio de Janeiro (calor!), São Paulo (calor!), Porto Alegre (calor!), Rio de Janeiro novamente (calor!!!) e depois de novo Porto Alegre para o final de semana final. CA-LOR!!!! Vôo rápido a Guarulhos e longa viagem até Maiquetia. Subida com cola até Caracas. E finalmente minha casa.


Foi bom estar com a família e os amigos. Foi bom mesmo. Mas chega uma hora em que você quer a sua cama, as suas coisas, a sua casa.






Cheguei a uma Caracas em polvorosa. Desvalorização do Bolívar Fuerte. Manchetes de jornal, entrevistas. Guarda Nacional a postos para impedir remarcação de preços. Lojas sendo fechadas. A sensação era de um triste déjà vie. Plano Cruzado, fiscais do Sarney. Só que aqui os caraquenhos não compraram bem a idéia ou não lhes venderam bem a idéia e entrou mesmo em cena a Guarda Nacional e outro tipo de fiscais.


Não cheguei a ver a corrida às lojas de eletrodomésticos e eletrônicos (Todos buscando um preço antes de possíveis reajustes), mas fui direto ao supermercado para ver se havia desabastecimento. Para minha alegria, não. Fiz minhas compras do mês. Ou como os gaúchos dizem, o meu rancho.


Havia ainda o fantasma do racionamento... de água e de luz. Mas quando começaria? Não tinha nenhuma informação. Ninguém tinha.






Fiz o meu rancho e quando cheguei em casa tive a resposta que eu tanto buscava: quando começaria o racionamento de luz? Bingo! Justamente na hora em que eu tinha uma tonelada de compras para levar ao oitavo andar.


Eu sabia que oficialmente estava planejado para haver um corte de quatro horas. Será que um frango estraga em quatro horas? E um salmão? Manteiga? Queijo? Leite é longa vida, não estraga. Ufa! Mas e as salsichas?


Tomada por uma força estranha, fui selecionando o que me parecia mais perecível e parti... Escadas acima. !Ocho pisos!


Os primeiro três andares foram bem, mas o que se seguiu foi como escalar o Ávila à unha. Os dois kilos de frango iniciais me pareciam dez no sexto andar e confesso que quando abri a porta de casa tinha certeza de que tinha comprado mais de uma tonelada da pobre ave. Pensei em abandonar as salsichas no sétimo andar, mas perseverei. Afinal, ainda havia o salmão. Por que diabos eu fui inventar de comprar salmão?!!


Em estado de choque, cheguei ao apartamento. Deixei as coisas no hall de entrada e corri para molhar as mãos que àquela altura estavam intumescidas. Vermelhas como camarões. (Ainda bem que não tive a idéia de comprar o crustáceo!). E então, surpresa! Abri a torneira e ouvi aquele som rouco e distante. Uma tosse tuberculosa. Diante de mim a Dama das Camélias em metal. Cof! Cof! Cof! Faltava água também.


Sou uma otimista incurável. Diante do caos pensei: oficialmente o racionamento é de quatro horas. Só faltam agora três horas e meia. Coloquei as coisas no congelador. Sabia que o frio resistiria ao tempo previsto e decidi esperar. Eu não podia fazer mesmo nada, pois tudo meu é elétrico, inclusive o fogão. Comi um resto de sopa de abóbora fria, liguei o rádio de pilha e esperei.


Exatamente quatro horas depois, a luz e a água voltaram. O dia estava lindo! O Ávila bem limpinho. Como primeira providência fiz um café e de caneca em punho fui para o balcón ver a tarde cair.






Ventinho. Cheirinho de café passado na hora. Céu azuuullll. Como é bom estar em casa! Quase tão bom quanto o sabor delicioso do primeiro gole em un guayoyo grande.

Nota: À noite, o presidente avisou que o racionamento de luz em Caracas estava suspenso, pelo menos até nova ordem. Vamos aguardar.

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MARES E MARÉS



Ainda estou no Brasil, mas já me preparando para voltar para Caracas. E quando estou no Brasil, não há tempo. Para nada. Talvez seja por isso, ou porque o ano seja de Yemanjá ou porque eu esteja com muita saudade de escrever Poesia... Não sei... Na semana passada, re-visitei poemas curtinhos. Hoje, trago um poema antigo que fala de desejos, destino e descobertas. Um prato cheio para o inicio de um ano que, espero, possa me trazer novos mares e boas marés.

Castelo de Areia
(in A sintaxe do espanto)


refazer o meu mar
molhar suas ondas
na orla arenosa

espuma e sal



verdes azuis

cascalho serpentes

refazer o meu mar



pingar no horizonte

uma gota de sangue

e amanhecer

entre nuvens


ventos sal/gema

batizar a saliva

no acridoce

do ar



refazer o meu mar

recostar em seu dorso

ouriços

mariscos

sereias



beber o murmúrio

do corpo das pedras

no corpo ácido e líquido



inverter correntezas

perscrutar as cavernas

ser peixe

ser ave marinha

antropofágico encanto



refazer o meu mar

barco

nave

nau

a singrar ventanias

a engolir vorazmente

o mágico encontro



silêncio e vendaval


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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

COLAR DE PÉROLAS



São Pedro finalmente atendeu as minhas preces. Na noite da virada, desligou a sauna úmida que era Porto Alegre e decidiu climatizar a cidade. Resultado: adentramos 2010 com temperatura de montanha, tchê! (Apesar de estar com Silvio a mais de dez anos, nunca sei quando usar tchê! Tchê para mim é que nem impedimento no futebol. Sei que existe, mas não sei explicar).



A possibilidade de usar uma roupa sem ficar totalmente melada e grudenta foi pra lá de motivação para eu querer me arrumar para a festa. Tinha comprado um vestido em tons de verde e já havia planejado tudo. Vestido e complementos seriam verdes. Esperança! Saúde! Ia ficar trilegal! (Ai! Me disseram que não se usa muito trilegal em Porto Alegre). Baaaa...! Que ia ficar trilegal, ia.


Mas na hora H, quando eu estava pegando o colar e os brincos verdes, fui arrebatada por um incontrolável desejo de usar pérolas. Ainda tentei insistir, mas era algo quase obsessivo. E não teve jeito. Virei o ano adornada em pérolas. Seria uma demanda mágica da Rainha dos Mares? Um desejo da vaidosa deusa que vai reger este novo ano? Sei lá. O que sei foi que usei colar, brincos e pulseira de pérolas. (Seja feita a sua vontade!)


E, após saudações e lentilhas, vencida pelo cansaço, já na cama, vislumbrei um céu azul noite e uma pérola única e especial. Blue Moon! (Por telefone, Cida tinha me explicado o que era. Blue Moon é a segunda lua cheia do mês. O fenômeno só vai acontecer agora em 2012). De súbito, me vi cercada de pérolas... por todos os lados.


Não sei como a idéia surgiu, mas o que me veio à cabeça é que poemas curtos são como pérolas. Diretos e precisos. Como pérolas, se são bons, são preciosos por si só. Se ruins, valem como uma bijuteria barata, mas ainda assim adornam.

Então, começo o ano novo desfiando um pequeno colar de poemas antigos. Talvez faça isso para que as musas entendem que estou carente de fazer Poesia.


PALAVRA


não toco as estrelas


com meus dedos


mas com a língua


saboreio a doçura da palavra


estrela


e o mel de cada sílaba



SETEMBRO 2000


... esta fala não dita


... esta fala maldita


meu verso me estranha


me abre feridas


silêncio navalha


um corte na língua



(Que saudades de escrever Poesia!!!)



AMOR

de igual para igual


saldamos nossas diferenças


e sorrimos silêncio


sábios de nós


(Nota: É saldamos mesmo.)




LIÇÃO DE PORTUGUÊS


Amar não é verbo


intransitivo


é verbo de ligação


Tudo depende dos predicativos do sujeito



(Aqui em Porto Alegre, me lembro de Mário Quintana!)




E por fim, um curtinho muito antigo que é como um lema em minha vida. Não me lembro do seu título:



Guardo no côncavo da mão


A água da vida


E é dela que bebo


Quando me impõem


sede


Que 2010 me traga muitas pérolas. Podem vir em caixa de veludo, baú de sândalo, joalheirinho de ébano com caixinha de música... Mas se não der, que eu continue encontrando à beira de meu mar de dentro, umas conchinhas miúdas e brancas... minhas histórias de casos e acasos que conto semanalmente.

(in pblower-vistadelvila.blogspot)