quinta-feira, 25 de junho de 2009

UMA AULA DE MEDITAÇÃO

Por razões lingüísticas decidi fazer aulas de Tarot e meditação. Seria mais uma oportunidade de ouvir, falar, enfim praticar espanhol. Devo dizer que tenho meditado menos do que queria, mas estou me revelando uma boa leitora das cartas. Acho que em breve vai surgir, no mercado esotérico, uma Lady Patricia e suas consultas infalíveis.
Em uma das aulas de meditação, Irma, a professora, nos explicou que iríamos à praia. Como moradora de Caracas, uma cidade que fica a mil metros do nível do mar e a muitos kilômetros cordilheira abaixo da praia mais próxima, estranhei a declaração. Iríamos fazer uma aula especial em alguma praia caribenha? Nada disso. Tudo aconteceu em nossa conhecida salinha de aula, em nosso cubículo transcendental.

A aula começou com o de sempre, relaxamento, respiração, um lento contar de trás para adiante e um convite ao cosmos. Neste dia, um convite à praia.

Irma ia descrevendo nossos caminhos, gestos, a cor do mar, o sabor do sal. Que cada uma de nós criasse a sua praia, própria, intransferível. E quanto mais eu tentava visitar mares caribenhos, mais me afundava em águas distantes no espaço, mas principalmente, distantes no tempo e mergulhava de cabeça na Itacoatiara de minha infância. Caia, sem salva-vidas, numa Patricia pequena, menininha, que adorava andar em sua bicicleta azul e ir a praia de tarde, quando a água é mais morna e tudo fica meio amarelado pelo pôr do sol.
A mestra falando e eu indo cada vez mais longe, mais fundo ... E de repente não era nem mais a praia, era nossa casa e os lanches de de tarde, com a mesa da varanda coberta com a toalha de linholene, café com leite e bolo PlusVita. E era a praia novamente e meus mergulhos na água clarinha. Era eu furando ondas. E era mamãe deitada debaixo do flamboyant, sempre fumando seu cigarrinho, e me contando histórias de pigmeus. E era eu na Prainha, brincando de Aventuras Submarinas e enfiando em cheio o pé num ouriço. Eu e sessenta e dois espinhos no calcanhar. Era papai varrendo as folhas da amendoeira para depois fazer uma enorme fogueira para se livrar dos mosquitos no cair da tarde. Eram os sapos e os morcegos em noites estreladas. Era a Pedra Paula, uma pedra pequena que tínhamos no jardim e que via imaginação de mamãe podia se transformar em navio de pirata, montanha, entrada para as Minas do Rei Salomão. Era a praia e era a lambreta e a Rural. Era a praia e o gosto de chupetinha, um pirulito super doce que vendia no armazém de seu Felício. Era o mar e os banhos de mangueira na volta da praia quando sempre dava um arrepio por causa da água morninha e da brisa do fim do dia. Era eu com meus sonhos de contar histórias e de viajar. Um dia eu ia fazer isto. Ahhh, eu ia.
Irma me propunha gaivotas e quem entrava em cena, em cheio, eram as tias que se diziam bruxas e soltavam uma grande gargalhada em uníssono: tia Gugú, Tia Babá, Tia Yeda, Titia de São Paulo e mamãe, todas bruxas! Eram os churrascos que papai fazia, quando eu sempre roubava um golinho da Cuba Libre dele. Eram os primos, as visitas. Tomavam cafezinho e se iam e a gente guardava as coisas e também partia porque já era domingo de tarde.
E novamente a professora interferia e me propunha boiar, logo eu, que naquele momento fazia bolinhas de sabão com água e um tantinho de detergente roubado da cozinha, mistura que eu soprava por um talinho tirado do mamoeiro. Como boiar em momento de tamanha concentração?
A praia tinha areia fofa e vizinhas mais velhas, que já até namoravam. Um dia eu ia ter dezoito anos. Ahhh, eu ia.

Irma começou a contar de frente para trás. Desfazia-se o encanto. Era o final da aula. E eu lá, com medo de ficar perdida no limbo, mas desesperada por ter de regressar. Voltei me agarrando às pitangueiras da beira da praia, aos galhos da amoreira. Não pude trazer comigo a minha bicicleta azul... E papai e mamãe ficaram por lá. Num cair de tarde. Talvez fosse domingo... Mas eles não guardavam as coisas e não vinham comigo... Não vinham.

Há lugares a que não se pode voltar. Não porque tenham saído do mapa, mas porque as pessoas deixaram de existir. Lugares que ficam no limbo. Lá.

E o resto é lembrança. Uma garrafa jogada no mar com uma mensagem escrita a lápis num pedaço de papel qualquer: “Um dia estivemos aqui e fomos felizes”.

(in à vista del ávila)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

ÁRVORES

Continuamos às voltas com plantas e árvores. A horta está progredindo a olhos vistos e, finalmente, a salsinha brotou. A buganvilla se negou a ficar na sala, começou a despetalar. Nós pensando em protegê-la e o que ela queria mesmo era muito sol e muito vento. Resultado, o balcón ganhou uma nova moradora. Linda!
Com tudo isso e os muitos passeios, cadê tempo para escrever? Então, aí vai um texto muito antigo, escrito em uma aula da pós na UFF. A professora, para quem a conhece, era Elzinha.
Além do texto, vai também uma foto de uma das muitas árvores deslumbrantes que encontrei nos Páramos de Mérida nos Andes Venezuelanos.

ÁRVORES DE MINHA INFÂNCIA

cajueiro
manga rosa
cajá-manga
sapoti

pé de acácia
flamboyant
jabuticaba
açaí

árvores de minha infância
plantas de tantos quintais


vegetais beirando estradas
sombras de vagos jardins


molduras de antigas casas
perfumes de fim de tarde
parentes da lua cheia
caule e seiva
mandarins


árvores da minha infância
varal de minhas fantasias


pousados em seus ramos
meus príncipes encantados
cavalos brancos
rios e mares
estátuas de bronze e marfim


mas a vida é boa mateira
tomou no punho o machado
e fez o tronco em desfeito
sobrou o lenho rachado

ainda assim
enraizadas
em meu corpo
em meu passado
estas árvores espreguiçam
os seus braços abstratos
e conservam aninhadas
minhas metas impossíveis

pássaros de azul pintados



(in à vista del ávila)




terça-feira, 9 de junho de 2009

PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES

Os sogros chegaram no final de maio e, além de conhecerem a cidade, decidimos desenvolver um projeto botânico-agrícola-ornamental. Perambulamos pelos muitos viveros (pequenos hortinhos, lojas de plantas) daqui de Caracas a procura de sementes, vasos, mudas ... e o que mais aparecer. Como sempre, qualquer experiência por aqui me vale uma aula de espanhol. É difícil imaginar o tempo que levamos para explicar ao vendedor que queríamos húmus e, só depois de muita mímica (imaginem a gente se fingindo de minhoca!), descobrimos “lombrifertil” (minhoca = lombriz), a melhor terra adubada da região.
Com o poderoso húmus e sementes de perejil (salsa) e albahaca (manjericão), além de uma floreirinha que parece de anãozinho de tão pequena, partimos para casa para começar os trabalhos. Na verdade, eles começaram a atividade, pois eu sou responsável apenas pela logística, isto é, deslocamento de carro e identificação de lojas que possam oferecer mais itens ao nosso projeto.
Antes do plantio, foi necessária a poda da única árvore de meu diminuto jardim. Meu jardinzinho suspenso da Babilônia. Enquanto um podava, o outro ajeitava as pedrinhas brancas e roliças que servem de base para o canteiro. Dona Leda é a responsável pelo lado estético-ornamental. Depois foi a preparação do solo e, por fim, a semeadura. E aí eu fui convocada para aprender como se faz. E aprendi, pois com a minha ansiedade e desconhecimento decidi fazer furinhos na terra e colocar uma semente em cada buraquinho. O sogro não se agüentou e começou a rir. Não, não, nada disso! Aplainou novamente o solo e, com delicadeza, foi passando os dedos, como um aradinho, bem por cima da terra. Foi abrindo pequeninos sulcos e foi despejando as sementinhas. Depois com mais cuidado ainda foi jogando terra por cima. Com orgulho, me senti participando de um nano-empreendimento agrícola. Cabe ressaltar que só pudemos fazer tudo isto porque estamos em período de lua crescente e cheia, que é tempo bom para se plantar hortaliças. Para flores é lua nova e para coisas que cresçam para dentro da terra é lua minguante.
Com isto, criou-se uma nova rotina na casa. Acordamos todos os dias ansiosos para ver como andam as sementinhas. Devo dizer que a albahaca apresenta uma performance cem vezes melhor que as sementes de salsa. Suspeitamos, com pesar, que estas últimas tenham encruado.
Compramos também uma bunganvilla rosa e branca. A arvorezinha foi trazida para a casa e está em lugar de destaque na sala. Dona Leda a limpou e colocou em seus galhos uns passarinhos de madeira que estavam esquecidos no jardim. Ficou linda! Tenho pegado Dona Leda em filosóficas conversações com a árvore. Não sei, mas acredito que quando eles forem embora vou ter que pagar um bom analista para a plantinha para retirá-la do estado de carência e depressão.

Há muitos anos atrás escrevi um poema curtinho chamado Senha II:

ainda não é tempo de colher as flores
mas sei
(e como é bom saber)
que elas florescem no jardim

Tenho pensado muito nele nestes últimos dias. Talvez tenha chegado o meu tempo de colher flores e resultados. Já arei muita terra. Terra de todo tipo. Em algumas épocas, era solo fértil, macio, todo irrigado. Em outras, arei foi pedra e, de noite, rezava que chovesse, nem que fosse um pouquinho, para que as sementes vingassem. Trabalhei em trator, de enxada e, às vezes, só à unha. Plantei semente de tudo. Teve semente que eu achei que ia encruar e que vingou e outras, que eu queria tanto que germinassem, e que se perderam na terra. Não serviram nem de adubo. Teve semente que eu achava que era de flor e que só deu erva daninha. O que sempre me encantou foram as sementes trazidas “em lombo” de passarinho. As sementes do acaso, que viram um tanto de flor cheirosa.

Talvez tenha chegado o meu tempo de colher flores e resultados ... Não sei. Mas, neste tempo, descobri que se é bom colher, melhor ainda é poder continuar semeando. Descobri que há diferentes solos, novos fertilizantes e outros espaços, mesmo que seja só uma pequena floreirinha. Terra pronta para virar árvore, fruta e flor.

Pego um punhado de sementes com minhas mãos, as acaricio. E vou envolvendo tudo com muita saliva e energia. Quando viram palavra, revolvo a terra e meus pensamentos e dou um sopro bem forte. Vapt... então, semeio o ar.

Que cada um que me lê possa sorver o doce da fruta colhida no pé e sentir o perfume da flor que lhe traga lembranças da infância. Se isso acontecer, vou ter certeza que ainda posso semear poesia.


(in à vista del ávila. Nota: A foto não faz juz à buganvilla.)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O QUE VOCÊ ESTAVA FAZENDO QUANDO AQUILO ACONTECEU?

Tinha seis anos quando Kennedy foi assassinado, no entanto, consigo lembrar com detalhes do momento em que recebemos a noticia. Era de tarde e mamãe, Maria José (minha babá) e eu estávamos passeando perto do Campo de São Bento quando Noêmia, prima de mamãe, nos encontrou e nos disse o que tinha acontecido. Lembro das duas conversando compungidas, do choro convulso de Maria José (será que ela sabia quem era Kennedy?) e de meu observar a cena. A tarde. O calor. O olhar das pessoas. A comoção.
Não sei bem se isso acontece só comigo ou se todo mundo tem essa memória fotográfica para momentos históricos. E não é necessariamente o momento, o fato histórico, mas o que você estava fazendo quando aquilo aconteceu.
Depois foi 1964 e os militares. Era de manhã cedo e estávamos na cozinha do apartamento da Moreira César. Papai, mamãe, Maria José, vovô Cláudio e eu. Na mesa escamoteável, o café da manhã e no alto da geladeira, junto ao pingüim (nós tínhamos um pingüim), o radinho de pilha, aos berros, resfolegava as últimas noticias. Lembro de papai criando estratégias. Ele iria tentar encher o tanque da lambreta, nosso meio de transporte na época, e mamãe e Maria José iriam para a fila do supermercado. Lembro de Maria José em prantos (será que ela sabia o que estava acontecendo?) e do olhar de meu avô, general reformado. Um olhar triste e distante.
Outros eventos se seguiram, como a chegada do homem a lua, a queda do elevado Paulo de Frontin e, muitos anos depois, o anúncio da morte de Tancredo Neves. Imagens e sensações tatuadas em mim.

No Brasil pouco se ouve falar das FARC. Sabemos muito mais sobre o Hamas e a Al Quaeda do que sobre o que é considerado o último movimento guerrilheiro ainda vivo na América do Sul.

Quando cheguei à Venezuela foi que a sigla começou a fazer sentido e parte da minha rotina. Seqüestros, negociações, políticos e militares em cativeiro, lutas na fronteira. Era um momento importante, pois havia muita pressão internacional para que Ingrid Betancourt fosse libertada, bem como os três americanos que permaneciam em cativeiro na selva colombiana há mais de cinco anos. Quanto mais o tempo passava, mais o assunto virava uma novela e, aos poucos, novos personagens iam surgindo. Heróis e bandidos, súbitas reviravoltas.
No inicio de 2008, a libertação de Consuelo González e, principalmente, de Clara Rojas com o seu reencontro com filho nascido na selva e mantido escondido em um orfanato fez da trama uma novela perfeita. Mas faltava o principal, a libertação de Ingrid Betancourt. Todos os dias a imprensa trazia novas informações. Na última prova de vida apresentada pelos guerrilheiros, Ingrid era uma mulher que parecia muito doente, muito distante da política jovem e aguerrida.

Foi nesta época que visitei Cartagena e, além da beleza natural e histórica da cidade, experimentei também a emoção de ver nas portas da cidade amuralhada (centro histórico) estandartes imensos com fotos de Ingrid Betancourt e as palavras: !Liberenla por Humanidad! !Liberenla!

Era julho e estávamos em plena estação das chuvas aqui em Caracas. Soraya me ligou para irmos almoçar no Mocambo e depois fazermos umas compras. Chovia muito! Depois do almoço, foi batendo uma preguiça... Enfrentar a chuva forte, ir a Chacaito para comprar o que mesmo?... Será que valia a pena? Soraya na direção, o rádio como sempre sintonizado na 99.1, Frecuencia Mágica. Íamos filosofando se não era melhor voltar para casa e ver um bom filme. E quando estávamos subindo a Avenida Principal de Las Mercedes, entra o plantão de noticias e chega diretamente de Bogotá a informação de que a Operaçión Jaque tinha sido um sucesso e que alguns reféns, entre eles os americanos e a senadora Ingrid Betancourt haviam sido resgatados. Já era tal o nosso grau de exposição aos fatos que nos emocionamos como se fossemos colombianas. A decisão estava tomada. Nada de compras. Fomos direto para casa e ficamos imersas nos acontecimentos por muitos dias.

Por que trago o assunto agora, um ano depois de ter acontecido? Porque Nancy acaba de me emprestar três livros que foram lançados sobre os seqüestros e a libertação dos reféns. Estou, neste momento, em plena selva da Colômbia, novamente observando os fatos, só que desta vez pelos olhos de diferentes seqüestrados. E como os olhares podem ser diferentes. Heróis viram bandidos e bandidos... bem, acho que eles continuam fazendo o papel de malvados na história.

Acho que este tem sido um maravilhoso efeito colateral de minha vinda para cá. Sou testemunha de fatos históricos que, certamente, não seriam relevantes para mim caso estivesse no Brasil, mas que sei são de suma importância para a história da América Latina e, conseqüentemente, para nós brasileiros, embora tantas vezes nos esqueçamos de que também fazemos parte desta região. Mágico continente, cenário surreal das histórias de Gabriel Garcia Marques e ... das novelas de Janete Clair.

PS: A libertação de Ingrid Betancourt não foi o último capítulo desta novela. Há ainda centenas de pessoas em cativeiro. Que em breve sejam libertadas. !Liberenlas por Humanidad! !Liberenlas!

(in à vista del ávila. Nancy, como siempre te digo, muchas gracias por tu ayuda y amistad.)