terça-feira, 28 de abril de 2009

PESSOAS

Silvio trabalha em Sabana Grande. O que há anos atrás foi um bairro, imagino eu, bastante elegante, com o seu boulevard, seu Centro Comercial e lojas e hotéis é hoje um lugar cinza ... e triste ... e feio.
Neste momento sei que Soraya e Ana vão se rebelar e partir em defesa da urbanización, ressaltando suas, digamos assim, peculiaridades. Suas pechinchas nas tiendas de sapatos e bolsas, seu movimento constante, suas múltiplas opções de lazer e compras no C.C. El Recreo, mas por mais que se esforcem, sempre me sinto desconfortável por lá. Tudo é ... gris.

Por ironia do destino, tenho que visitar Sabana Grande todos os dias. É minha primeira ação matinal, mesmo antes de caminhar, pois como só temos um carro e moramos meio que fora de mão, sou eu que levo Silvio para o trabalho e depois fico com o carro o resto do dia. Na volta, ele sempre arranja uma alma caridosa no escritório que lhe dá carona. (Cabe aqui um agradecimento especial a Walter por sua alma sempre generosa e solidária).
E, então, é assim de segunda a sexta. A gente acorda, toma café e ruma para a Torre Plaza que fica na Avenida Casanova, quase em frente ao Hotel Melia. Tomamos um camino verde que passa pelo Castillo e em menos de quinze minutos já estamos lá.

O trajeto, que poderia ser marcado por pontos de referencia como um parque, um prédio, uma praça, é, para mim, marcado por pessoas. As mesmas pessoas em quem meus olhos se esbarram rotineiramente.

A começar pelo senhor da cadeira de rodas. Todos os dias, vai se movimentando entre os carros bem debaixo do viaduto. E, na desordem do trânsito de Caracas, lá está ele e sua cadeira e buzinas e freadas e mototaxis e guardas que complicam ainda mais o que já é puro caos.
Passando por este senhor, seguimos adiante e encontramos pontualmente a senhora do hotel suspeito. Ela é uma entidade que me intriga cada vez mais. Na região há muitos moteizinhos para encontros clandestinos, o que gera, no inicio das manhãs, uma população de mulheres cansadas e com a maquiagem desfeita. Boêmios e bêbados a perambular pela rua. Pessoas, enfim, para quem a noite, que não garantiu boa féria, insiste em não terminar. Pois é neste environment que encontro, quase todos os dias, uma senhora de seus cinqüenta e muitos anos, elegante e cuidada que sai de um desses hotéis levando uma mala preta e pequena como aquelas permitidas em cabines de aviões. Está sempre muito bem maquiada e bem vestida. As cores sóbrias de suas roupas jamais indicariam um oficio vulgar. Apesar de sua freqüente presença no hotelzinho, nunca cumprimenta ninguém. Sai e toma o primeiro táxi que passa. Quem seria esta mulher? Que história teria ela a me contar? Um dia ainda paro o carro e pergunto sobre sua vida. Um dia ... talvez.
E aí, está na hora de virar em uma travessa pequena e, depois de passar pela oficina do marceneiro que faz seus móveis em plena rua, caímos no espaço da noite infinda. Dois hotéis, carentes de estrelas, cospem seus últimos clientes, que ficam um tempo parados na calçada, meio sem saber o que fazer, talvez esperando que a noite volte a cair o mais rápido possível. Algumas mulheres de calças baixas e bustiês bem curtos já comem arepas de um bar da esquina. Tudo isso envolto em sacos pretos de lixo e cachorros vadios.
Chegamos então à Av. Casanova e seu trânsito já bem pesado, com centenas de motociclistas, que, normalmente sem capacetes, costuram entre os carros. É chegada a hora dos loucos. Um, mais low profile, caminha diligente em direção a ... O outro, é sempre uma festa, inesperado. Às vezes, discursa em voz alta coisas de política e religião. Outras vezes, anda de costas em plena rua, desafiando carros e motos. E tem dia em que corre em passos sincopados sua onírica maratona. Um é sisudo e triste, o outro extremamente... feliz.
Foi em Sabana Grande que também vi sinais de transito vivos. Isso mesmo. Não são guardas de transito, mas sinais ... vivos. Homens que se colocam nos cruzamentos onde não há semáforos e orientam os motoristas. O mais fantástico é que as pessoas seguem sua orientação e, quando lhes é permitido seguir, abrem a janela dos carros e lhes jogam uma moedinha como reconhecimento do trabalho.

Pessoas. Párias. Loucos. Cumprindo seu dever de existir. Anônimos rostos que destoam da sempre massa colorida, porquê opacos e invisíveis. Trans-lúcidos.

Talvez, na verdade, sejam eles que façam das cidades, cidades. Grandes cidades, sempre iguais, independente do país, da região, do continente. Silenciosos seres com suas misteriosas e eloqüentes histórias. Peculiares.

Sabem... Afinal de contas, talvez Soraya e Ana tenham razão.




(in à vista del ávila. Foto: Cestas de Cartagena by Tom Bragança)







quarta-feira, 22 de abril de 2009

ONDE ESTÁ O TEXTO?

Marília e Louise estiveram por aqui. É sempre uma delicia matar saudades e mostrar aos amigos um pouquinho desta terra e de minha vida em Caracas. Outra coisa que adoro é ver com olhos de turista recém chegado paisagens que de alguma forma já se tornaram rotineiras para mim.

O Ávila, a principio, se fez de rogado. Nada de aparecer. Até que Silvio deu um ultimato e, no sábado, ao invés de almoçarmos, subimos a montanha. Como sempre, Silvio estava certo. A paisagem foi se abrindo aos poucos e lá do alto pudemos passar uma tarde maravilhosa com direito a ida a Galipan para comer sanduíche de pernil e beber jugo de fresa e de mora. Conheci paisagens novas por lá. Também subimos e descemos caminhos íngremes, que para Lou e Silvio pareciam tranqüilos, mas que para Marilia e eu cresciam e se alongavam cruelmente. Sobrevivemos, apesar da falta de fôlego.

No dia seguinte, Colônia Tovar. Escolhemos ir por La Victoria, para fugir dos engarrafamentos de El Junquito. A opção foi mais que certa, pois a estrada é boa e com paisagens de tirar o fôlego! (desta vez, no bom sentido).

Segunda-feira foi dia de descanso e ficamos mesmo por Caracas e, na terça, seguimos a tradição, fomos visitar El Hatillo. Vimos artesanías e comemos um Levanta Muertos (caldo de galinha com batatas), bem gostosinho, apesar do cilantro (coentro). Os venezuelanos, como os baianos, gostam muito de coentro. Tudo acompanhado de muito queso guayano, o grande hit gastronômico escolhido tanto por Marilia quanto por Louise.

Quarta-feira, elas já se preparando para viajar, e mais um pouquinho de Caracas, com direito a cachapas e mais queso guayano. Eu não tomo jeito mesmo e levo as pessoas para o mau caminho, isto é, restaurantes e comidinhas, digamos assim, “engordativas”.

Enquanto passeávamos, eu não conseguia esquecer que havia um texto a ser escrito. Com a chegada das meninas, eu não tinha tido tempo de preparar o texto que entraria no blog esta semana e aproveitei para buscar entre nossas aventuras algo que me desse o mote para eu escrever. Mas ... nada acontecia.

Para eu escrever algo tem que haver como que uma paixão a primeira vista ou uma súbita simpatia. Tenho que sentir vontade de rir ou chorar ou só uma vontade grande de dividir com o outro um pouco do meu vivido. Por mais que eu queira, não sou eu que controlo, é o texto que se impõe. Às vezes sorrateiro, às vezes em avalanche incontrolável. Mas nem as paisagens, nem o bem estar de estar com gente que eu muito amo, nem o clima, que se fez perfeito ... nada ... o texto não se apresentava.

Perscrutei nas coisas mais simples, como o vaso de flores azuis em Galipán ou o menino brincando com os cavalos lá no alto da montanha. Poeira levantada pelos cascos e pelos pés pequenos do menino levado. Nada. Busquei na imensidão da Cordilheira da Costa, enquanto a serpenteávamos até chegar à Colônia Tovar. Uma montanha atrás da outra fazendo um maciço de vales, céu, vegetação e muito vento. Nada. O texto ... onde estaria?

Foi só na madrugada de terça para quarta que ele se fez presente. E lá pelas três horas da manhã foi me sussurrando “Lembra do segundo vale. O segundo vale”. Era isso. E tinha acontecido no sábado, logo no primeiro dia de passeios.

A subida do Ávila por teleférico tem dois momentos. Não é que o bondinho pare, mas como se está subindo uma cordilheira, não se sobe uma montanha e sim várias. As elevações vão se desdobrando na subida. Mas há dois momentos mais marcantes. Subida reta (como um primeiro vale), topo, outro vaaaaaale, topo e chegada. Lá estava o texto, neste segundo vale, que Silvio insiste em afirmar que é o primeiro e único. Não importa, era naquele vaaaaaale que estava o texto. Em um cair de tarde que se esforçava por se fazer o mais belo possível apesar do céu ainda acinzentado. Em um silêncio que só existe ali, porque é silêncio feito de vento e de um cantar de passarinhos bem ao longe. Em sua altura descomunal que a gente finge que não vê, disfarçando e olhando uma mata fechada que cobre toda a região. Dali, não se vê Caracas. É como se o tempo, o céu, o lugar, tudo tomasse novas perspectivas, um novo ângulo. E se a gente está atenta e se cala e só olha e respira, a gente também entra nesta nesga de espaço, neste viés de tempo.
Não sei quantos minutos dura a sua travessia, mas por mais que eu esteja cercada de pessoas, algumas inclusive um tanto assustadas pela altura e imensidão, sempre consigo me abstrair e ter a mesma sensação da primeira vez que subi. Não é voar, é um não pertencer. É estar a salvo ...

Que eu nunca me esqueça, onde quer que eu esteja, que há a possibilidade deste segundo vale, onde moram o silêncio e um pedacinho da eternidade.

E que eu esteja sempre atenta, onde quer que eu esteja, aos textos sorrateiros que chegam pela madrugada, sussurrando seus mágicos motes ... meus momentos mais inesquecíveis.

(in à vista del ávila)

terça-feira, 14 de abril de 2009

AMOR

Não, a história não tem nada a ver com a Venezuela, nem com o Rio de Janeiro e nem mesmo com Aruba, lugar onde ela aconteceu. Na verdade, não é nem sequer uma história, é apenas um momento, um quase por acaso perdido em um sábado de sol, entre vento, terras vulcânicas e o mar do Caribe.

Aruba é uma ilha pequena de não mais que 32 kilometros de diâmetro, dividida em dois lados. Um voltado para o mar aberto, onde bate um vento eternamente intenso, com uma terra agreste e um mar picado e forte, onde só se aventuram cactos, surfistas e gente que gosta de esportes radicais. No outro lado, a própria ilha se protege das intempéries, se aconchega e faz do vento, brisa, da terra agreste, pequenos jardins e transforma o mar em piscinas naturais.

Na região mais inóspita, perto das ruínas da casa de fundição de ouro, há um jardim especial. Chama-se Jardim das Pedras. Junto ao mar, em um elevado, em um solo desértico, há milhares de pedras que se espalham por uma área não muito grande. Como em um pátio. É neste lugar, que por tradição, os visitantes criam pequenos castelos, colocando uma pedra sobre a outra e fazendo um juramento de que algum dia voltarão. Não sei como essa história começou, provavelmente foi idéia de um guia cheio de idéias, mas o fato é que agora o gesto de empilhar pedrinhas transformou-se em ritual.

Silvio e eu não resistimos ao convite e também fomos nós, juntos, criar nosso pequeno castelo à beira mar. O vento zumbindo nos ouvidos, o mar em nossas bocas, na saliva, muita maresia, e nós buscando a pedra maior que serviria de base para a construção. Escolhido o alicerce, cada um de nós buscou sua pedra. Eu achei uma pequena, ele, uma um pouco maior. Colocamos juntos as pedras sobre a base vulcânica e fizemos a promessa de voltar.

Depois ele olhou para mim e sorriu um sorriso que só ele sabe dar. Não se fez de rogado: “Viu? A pedra maior é a minha, porque sou maior e mais forte.” E eu sorri e me fiz de ofendida e incrédula, mas não disse nada ... Eu sabia que era verdade. Olhei para o nosso castelo. Nossas pedras unidas, o vento e o sol. Fotografei o momento com a câmera e meu coração.

Fomos saindo devagar em direção ao carro. E lá ficou nosso castelo. No Jardim das Pedras. À beira mar.

Lá ficou nosso castelo, como uma promessa, como uma confirmação.


(in à vista del ávila. Foto: Jardim das Pedras, Aruba)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

XÍCARAS DE CHÁ E MOMENTOS ESPECIAIS

Às vezes me preocupo de não estar cumprindo com a minha promessa de contar histórias da Venezuela e estar me perdendo em meus contos mais que particulares. Fatos que poderiam acontecer em qualquer parte do mundo. O problema é que, de certa forma, tudo que acontece comigo agora tem relação com as terras caribenhas. Principalmente as coisas que dizem respeito a móveis e utensílios.

Antes de ir para Caracas, eu morava em três lugares. Tinha um apartamento em São Paulo, onde Silvio trabalhava. Uma casa em Niterói, a minha residência oficial, de dois andares e guardiã do espólio de meus pais, em especial do de minha mãe e sua compulsão por colecionar louças. E um apartamentinho no Rio, a Cápsula, quase um acidente de percurso, pois ficava pertinho de onde eu trabalhava e que decidi comprar como um efeito colateral da violência urbana.

Quando viajei, o problema não foram os imóveis, que estão alugados, a exceção da Cápsula, que é meu reduto quando estou no Rio. O problema foram os móveis e utensílios. Três casas totalmente equipadas significam três de tudo, ou pior, criando-se uma progressão geométrica, três vezes muitas coisas. Por exemplo, tenho guardados na Cápsula mais de quinze pirex sem nenhuma perspectiva de uso. Grandes, pequenos, ovais, quadrados, redondos, velhinhos, novinhos... Podia abrir um restaurante e um bar só com o estoque atual de copos, pratos e bandejas. De talheres sou meio fraquinha, são apenas dois faqueiros. E se pensam que é fácil vender tais objetos, que venham me ajudar, pois como comerciante, sou uma boa professora de inglês.

Na semana passada, enquanto pensava o que dar de presente a uma de minhas primas, tive a idéia de presenteá-la com parte do acervo de louças de minha mãe. Ninguém melhor do que ela, que adora chá, para receber as chávenas japonesas de porcelana casca de ovo. Seria um carinho meu e da Tia Thereza, por toda a ajuda que ela tem me dado com documentos e cartórios.
Comprei uma caixa bem bonita e papel seda e um laço repolhudo. Depois retirei as xícaras do armário e decidi lavá-las antes de preparar o presente, pois estavam cheias da poeira dos tempos (expressão tantas vezes usada por mamãe).
Enquanto as ia lavando, entre muita espuma, água corrente (que me perdoem os ambientalistas) e um enorme cuidado para não quebrá-las, tentei lembrar quantas vezes, ao longo de toda a minha vida, nós havíamos usado as chávenas. Por mais que tentasse, só conseguia pensar em um ou dois momentos. Por que tão poucas vezes? Mamãe adorava as xícaras e não era raro tomarmos chá. Então, por que tão poucas vezes?
As xícaras eram, são como jóias. Bonitas, delicadas e cada vez mais raras. E jóias são usadas em momentos especiais.
As xícaras são de porcelana muito fina e qualquer gesto brusco pode quebrá-las.
Assim, na espera de um momento especial e por cuidado para não perdê-las, o que se perdeu foi o prazer de se tomar chá em chávenas casca de ovo, que, frescuras à parte, faz o sabor da bebida ficar ainda melhor.

Lavava as xícaras e lembrava de inúmeros momentos simples e cotidianos em que tomamos chá conversando muito e rindo muito e brincando muito. Momentos perfeitos, como fina porcelana. Momentos perfeitos para finas porcelanas, mas elas não foram usadas. Permaneceram na arca, em sua potencialidade de beleza e prazer. Havia que preservá-las e, por isso, foram subutilizadas. Para mantê-las intactas, foi necessário escondê-las e talvez, depois de algum tempo, até mesmo esquecê-las lá no fundo da arca de jacarandá, a arca das louças especiais, para os momentos especiais.

Parto hoje para Caracas. Dei a arca para uma amiga e as xícaras para minha prima. Junto à caixa bonita e o papel seda e o laço repolhudo, coloquei um cartão com a seguinte mensagem:

Querida Anna,

Estas xícaras são para ser usadas cotidianamente. São as do dia a dia, para você tomar chá com a família. São para os momentos da vida. Não tenha o menor pudor de usá-las. E se alguma delas se quebrar, é porque já era hora de ser quebrada. Nada mais.
Jóias não usadas, são pedra bruta. Livros não lidos, puro silêncio ...

Obrigada por tudo.

Beijos

Pat


Não sei ... Pode ser imaginação ... Mas quando entreguei o presente, ouvi um tilintar alegre dentro da caixa, como delicados brindes, como gargalhadas de agradecimento.

(in à vista del ávila. Foto: Coleção de pedras preciosas do Houston Natural Science Museum)



quarta-feira, 1 de abril de 2009

WHAT'S IN A NAME?


Ainda sob o impacto da montagem de Hamlet e ainda em terras brasileiras, reencontro Patricia Blower. Não, não se espantem, não há nada de esquizofrênico em tal declaração. A história é outra, bem mais simples que qualquer tragédia de Shakespeare.




Por muitos e muitos anos fui mais que Patricia, fui Patricia Blower. Quando comecei a trabalhar dando aulas de inglês, eu era Miss Blower. Depois o sobrenome pegou e virou nome de guerra no trabalho. Quando lancei meu primeiro livro, lá pelo final da década de 70, lembro do dono da editora, Moacir C. Lopes, me perguntando que nome eu usaria e ele mesmo me sugerindo “Patricia Blower. É forte, tem impacto”. Então virei Patricia Blower também em território literário. Vivenciei variações carinhosas, entre elas a mais famosa “Amiga Pat Blower...”, mas nada que fugisse por demais do padrão. Assim fui forjando minha identidade.

E um dia fui viver em Caracas.

Na Venezuela, para tudo que você compre, de uma caixa de fósforos a um aparelho de jantar, de um lençol a toda mobília do quarto, terá que dar ao vendedor muitas de suas informações pessoais para que ele possa fazer la factura. Isso se deve a um controle estatal e, portanto, depois da compra de, por exemplo, um lápis, se faz necessário informar seu nome e endereço completíssimos e o número da cédula (carteira de identidade) ou, no meu caso, o número do passaporte.
Logo que cheguei, temia que qualquer erro em tais informações poderia levar o pobre infrator à prisão. Assim, levava um tempo enorme em meu processo de identificação. Cambaleava na pronúncia do endereço e enfrentava bravamente o desafio de dizer corretamente o número de meu passaporte, que, diga-se de passagem, por começar com 20, levei algum tempo para entender que não era nem vinte nem binte, palavras ininteligíveis para os caixas, e sim beinte. O meu sobrenome, no entanto, era sempre o mais desafiador. Dizia Blower e o caixa me olhava ou com um olhar inquisidor ou admitidamente ignorante. ‘?Como señora?” E, aí, era o clímax do desespero, quando eu tinha que soletrar o meu apellido. E lá ia eu: “bê alta; ele; o; doble bê, e, errrrrrre”. Eu saia da loja com o meu lápis e totalmente estressada. Nunca pensei sofrer de estafa por comprar pequenos objetos.
Mas fui me aclimatando à cidade e aos poucos comprovava que para toda regra muito rígida, há sempre uma forma de burlá-la. Eram os próprios logistas que simplificavam as coisas. Pediam-me só o município onde eu morava e o meu primeiro e último nomes. Fui entendendo que não havia nenhum grande computador detector de mentiras que cruzava todos os dados e depois apresentava a lista dos faltosos. Nada disso. Eram só espaços em um papel que deveriam ser preenchidos, fosse com a informação que fosse. Então, passei a brincar. Mudava os bairros onde eu morava e o meu próprio nome, até que cheguei a um modelo super simples: Maria Costa, que é o nome dentro de meu nome. Patricia Maria Costa Blower. A fórmula teria dado certo se eu não me esquecesse que eu também era Sra Maria Costa e, muitas vezes, respondi a ligações telefônicas ansiosamente esperadas, dizendo que era número equivocado, pois não havia nenhuma Maria Costa no local.
Com o passar do tempo entendi que eu precisava ser Patricia, mas que me era impossível ser Blower. Usei então o modelo hispânico, que considera como sobrenome principal, o sobrenome materno. Por fim havia chegado ao estado da arte. Patricia Costa. É assim que sou conhecida por lá.

Tenho um amigo que diz que quando pensa em mim hoje em dia, pensa em duas pessoas diferentes: uma que está por aqui e que ele conhece e outra distante, alguém que mora em outro país e com quem ele não tem muita intimidade. Não sei bem o porquê de ele sentir ou pensar assim, mas acho que isto se deve a sua dificuldade de me imaginar em Caracas. Ele não tem nenhuma referencia, nem da cidade, nem da minha casa e nem mesmo de minha rotina por lá. Viro outra. Virei outra?

Há alguns indícios interessantes de uma certa mudança. O cabelo está maior e os saltos bem mais baixos. Os terninhos foram substituídos por jeans. Se possível sem maquiagem. E aprendi a cozinhar. Caminho por uma hora, todos os dias. Acordo mais tarde. Durmo melhor. Hoje, tenho tempo para errar e refazer coisas. Experimentar e retroceder. Ceder, quando necessário, sem me sentir perdendo algo. Não quero mais mudar os outros, mas sei que posso ousar mudanças a cada dia. Quando quero, me reinvento e quando não quero, fico bem quietinha vendo a vida e as nuvens no Ávila passarem. Tenho aprendido coisas que já havia esquecido e esquecido outras que tive obrigação de aprender. Não é que a vida esteja melhor, é que eu quero fazer de cada momento meu algo mais tranqüilo. Voltei a ter o prazer de escrever.
Preservei, no entanto, a minha curiosidade e a disponibilidade para aprender a cada dia. Tenho orgulho de minha indignação. Falo bem menos, mas continuo querendo contar muitas histórias. Me pego cometendo muitos dos mesmos erros que fazia e continuo a me irritar com isso. Continuo precisando emagrecer. Sinto sempre prazer em estar com gente querida e em conhecer gente nova. Continuo gostando de ler, comer, ouvir musica e viajar. O que mudou agora é que tenho tempo para fazer tudo isto.


Um dia Shakespeare escreveu: What’s in a name? That which we call a rose by any other word would smell as sweet.

Shakespeare escreveu, mas quem disse a fala foi Julieta, uma quase menina. O que ela não sabia em seus quatorze anos vida é que os nomes ficam impregnados das coisas e das pessoas. E se dizemos rosa, não importa se vermelha, branca ou amarela, mas a palavra, o som vem sempre seguido da possibilidade do perfume. Essência original.
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Não sou Patricia Blower. Não sou Patricia Costa. Sou Patricia, que por costume ou por essência, como boa leonina, permanece aberta à vida e disponível à alegria como se todo dia trouxesse consigo a possibilidade de um dia de sol.




(in à vista del ávila / a foto é o resultado de uma festa inesquecivel)