sexta-feira, 30 de maio de 2014

QUALQUER SEMELHANÇA...



Quanto mais penso no Brasil, mais o acho parecido com as calçadas de pedrinhas portuguesas do Rio de Janeiro. 

Posso listar, pelo menos, umas dez semelhanças que fazem de tais calçadas a mais perfeita tradução do país. Pequenas pedrinhas lascadas, a grande metáfora do sonâmbulo gigante.

Querem provas? Então vejamos:

1) Ambos, Brasil e calçadas, foram descobertos, inventados, trazidos ao conhecimento de todos, (paridos!) pelos patrícios lusitanos;

2) Ambos, Brasil e calçadas, têm um quê de boa ideia; 

3) Ambos, Brasil e calçadas, saem super bem nas fotos. São hiper fotogênicos. Perfeitos para inglês ver;

4) Quando vistos ao longe, ambos, Brasil e calçadas, têm uma beleza despojada e tropical;

5) Ambos, Brasil e calçadas, necessitam de planejamento. E até que são planejados. Desenhados pela mestria de arquitetos e pela estética divina;

6) O problema é que ambos, Brasil e calçadas, são muito mal implementados. Deus até que se esforçou e ficou contando com a nossa manutenção, mas a realização das calçadas... O desenho até que é seguido, mas o prumo... Em pouco tempo se transformam em pista de obstáculos. Verdadeiros murundus. (Menos as que são para inglês ver! Ah se todo o país fosse uma imensa orla de Copacabana!);

7) Ambos, Brasil e calçadas, são feitos para serem desfeitos e refeitos e malfeitos... Não há uma calçada portuguesa que, quando esteja terminadinha, não seja arrebentada à marreta para que se passe o cano de água, luz, internet... Quanto ao Brasil, o destruímos sem pudor: terras, mar e ar (e as lagoas também!) para que depois possamos ter mais verbas para refloresta-lo, despoluí-lo, para que logo possamos recomeçar a barbárie novamente;

8) Ambos, Brasil e calçadas, nos põem armadilhas. As calçadas, com seus buracos quebra pé e o país, com suas balas perdidas;

9) Ambos, Brasil e calçadas, pegam no nosso pé. As calçadas, em especial, quando usamos salto agulha. O país, com sanguessugas vorazes disfarçadas de leão;

E, por fim, e isso é o mais grave:

10) Ambos, Brasil e calçadas, estão entregues à gente que não sabe ou não quer mantê-los, cuidá-los... Não os quer respeitar e oferecer a eles o que faz deles referência de beleza. Nossos calceteiros, quando muito, aprenderam no sufoco e no oficio. Substituímos a falta das pedrinhas por qualquer coisa. Pedras, pedregulhos, cimento, lixo... Nossos políticos tampam os rombos feitos por sua famélica ganância com nossos tributos, nossa doença, nossa desesperança, nossa fome de justiça... Nós, lixo!

E assim vamos seguindo, entre tropeços e buracos... Enquanto houver o calçadão de Copacabana, tão estético, tão lisinho, isento de falhas... Perfeito... Maquiada passarela tropical para inglês ver. 

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

PAPEL PICADO


Ficou decidido que veríamos os jogos lá em casa. Todos concordaram que jogar papel picado das janelas de um décimo andar seria algo super legal. Naquela época, quase todos da família moravam em casas... Com varandas e quintais.

Papai era o mais animado. Algumas semanas antes do início da Copa, já tinha coletado uma enormidade de jornais que todos nós, crianças em fase de adolescer, adorávamos picar para deixar já tudo bem preparado para todas as vitórias. Não havia dúvida, iríamos ganhar.

Foi com muita discussão que organizamos os comes e bebes. Ficou combinado, sanduíches e refrigerantes. Tinha cerveja também, mas só para os adultos. O que não impedia que déssemos desavisados golinhos na cerva quando os dribles nos permitiam. 

Foram dias de início de inverno bem quentes e não importava que a seleção estivesse tão longe, em terras mexicanas. Éramos todos uma só emoção. Todos, um só coração. 

E vieram os jogos, os gols, os gritos de alegria, a festa nas ruas. Éramos poderosos! Imbatíveis! Todos vivíamos em um milagre. Todos, um só coração.

Nossos pais eram jovens e nos pareciam felizes. Nós éramos crianças, com um pé de nada na adolescência,  e éramos seus cúmplices no pacto com esta felicidade.

Éramos simples... Provincianos... Primários, talvez... Mas tínhamos visto o homem chegar à Lua, pouco antes, menos de um ano antes. Sonhávamos sonhos infantis e, por isso mesmo, despudorados e hiperbólicos.

Os anos de chumbo ficavam encobertos por dias de céu azul. A isso, talvez, se possa chamar de infância. 

Era a nossa primeira Copa de verdade. Não lembrávamos bem de 58 e 62 e queríamos esquecer 66. Roíamos as unhas. Rezávamos em voz alta e fazíamos promessas jamais cumpridas. E, talvez porque Deus soubesse que eram barganhas infantis, ganhamos a competição.

Toneladas de papel picado despejadas pelas janelas. Batucada pelas ruas. Muito samba, suor e gargalhada. Fantasias de papel crepom e gigantescos balões, politicamente incorretos, carregados de fogos de artificio. 

Papel picado!

Papel picado...

Muito papel picado.

As noticias dos jornais vagando ao vento... Se misturando... Se perdendo no tempo e na História.

Depois vieram outras Copas. Vitórias e derrotas. Outros dribles. Estes mais duros. Fomos virando Garrinchas, com nossas pernas tornas e nossos sonhos tontos. 

O país do futebol foi perdendo seus gramados mais verdes. O papel picado foi aos poucos, sendo feito de tratos não cumpridos, promissórias não pagas, promessas de dias melhores...

A cada Copa, ainda fingíamos ser campeões. Mesmo com os cartolas e os vira-casacas. Mudamos de uniforme e de time... Vendemos os nossos craques.

A cada Copa, ainda fingíamos... 

Mas nessa,  não posso, não dá... Tenho medo, muito medo que em breve, logo, logo, o papel que será rasgado para o festejo de poucos seja o texto, ainda que rascunhado, de nossa verdadeira história... A isso, talvez, se possa chamar de velhice... Astucia ou estultícia?   

 (in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

HITCH YOUR WAGON TO THE STARS




Lá pelos idos da década de 1980, rascunhei um poema curto e triste que falava de uma geração brasileira que preferia fazer as malas e sair do Brasil para tentar a vida fora do que ficar dando murro em ponta de faca em terras tupiniquins. Um poema curto... Triste... Inacabado. 

Era ainda o tempo do chamado "entulho autoritário", vivíamos ainda as sequelas de uma ditadura. Havia desemprego, desesperança, uma inflação de dar medo e uma geração nova e cheia de gás não encontrava espaço para botar o pé em seu futuro. A culpa era do passado...

Um poema curto... Triste... Inacabado.

Nunca o retomei, porque os tempos mudaram, a esperança voltou. Fomos nos encontrando em desencontros e equívocos. Exercemos o nosso direito democrático de votar, escolher, recriar o país. Ao invés de olharmos para o passado, tentamos inventar o futuro. Fizemos até sucesso. Fomos capa de revista... O Cristo Redentor levantando voo como foguete.

E voltamos a ser capa de revista... O Cristo desgovernado...(Eu disse desgovernado!)... Em queda livre.

E agora, não dava mais para culpar o passado. Agora,não era mais o "entulho autoritário", mas quem sabe,o "lixo demagógico" que foi sendo varrido para baixo dos tapetes oficiais.

Um poema curto... Triste... Inacabado.


E hoje, quase meados de 2014. A menos de um mês da Copa das Copas, sediada no Brasil, o eterno país do futuro, pensei em retomar o poema... Triste e inacabado. Li e reli o rascunho algumas vezes, buscando um final menos banal. Mais que um final, buscava uma saída. Não para aquela geração que já pariu seus filhos em outras terras, mas para esta geração brasileira de 2014. Nova, forte, cheia de vida, que retoma o bordão: " A melhor saída é o aeroporto...".

Tentei encontrar um final feliz... Mas desisti. 

Ficou apenas um poema curto... Triste... Com um final banal.

EIGHTIES SUNSET

as cidades
ciladas de pedra

minha terra
mãe vadia
aborta seus filhos pródigos
por portões de aeroportos
todos com o mesmo rosto
tudo um mesmo passaporte
filhos paridos no vento
(hitch your wagon to the stars)

cocaína cucarachas
epcots carabinas

lavam pratos
comem restos
do farnel do Mickey Mouse

pobres eighties
eighties tantos


etcetera
etcetera
etcetera
e tal.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

BONS MENINOS E MENINAS




Sim, eu sei que o Dia das Mães não é comemorado na mesma data em todo o mundo. Sei, também, que as comemorações têm um viés comercial de fazer inveja a muito cacheiro viajante de tempos imemoriais. Sei que há muito mais lacinhos cor de rosa em eletrodomésticas lembranças ou carinhos virtuais do que em rotineiras cumplicidades e carinhosa obediência. Fomos e somos filhotes levados, mas sempre com muito amor!

Mas vamos imaginar, por um minuto que seja, que o dia universal das mães é no próximo domingo e que todos, mas todos mesmo, somos irmãos, filhos da mesma mãe parideira: A Mãe Terra.

Que presente poderíamos dar para ela que nos fez, nos carrega em seu colo, nos alimenta e cria os filhos dos filhos de nossos filhos.

Se fizéssemos uma vaquinha de intenções, juntando a contribuição de cada um dos habitantes da Terra, que lembrancinha cor de rosa poderíamos lhe dar?

Tenho uma ideia. E se todos, mas todos mesmo, por um dia, um lapso de vinte e quatro horas, pudéssemos nos comportar bem? Sermos todos bons meninos e meninas. 

Será que a gente aguentava se segurar por um dia e não brigar com os irmãos e não sujar nossa casa, que é grande e que já está imunda, a despeito dos desesperados esforços de nossa Mãe Terra em tentar se auto limpar.

Por um dia, sermos o que é esperado de nós. Todos nós. Todos nós, mesmo. Seres humanos e civilizados. Sermos humanos e civilizados. Não precisamos nem exagerar nas delicadezas, mas exercer o prazer do convívio entre irmãos.

Por vinte e quatro horas, nada de guerra, nada de confronto, nada de poluir, nada de se vingar, nada de ver o outro como diferente, antagonista, inimigo, uma ameaça. 

Neste Dia das Mães, haveria um culto megaecumênico e todos se veriam plenos em suas diferenças de cor e corpo e raça e credo. Quanto à orientação sexual, todos nos travesteríamos de alegria e exerceríamos o direito a amar o amor.

Não seríamos nem ricos nem pobres e todos comeríamos o almoço de celebração debaixo de pés de frutas lá no fundo de um quintal. 

Nosso maior ato de sustentabilidade seria sermos delicados e gentis uns com os outros e não precisaríamos ser politicamente corretos, pois seríamos corretos sem nenhuma segunda intenção.

Todos teríamos a chance de ser o que bem quiséssemos, sem nenhum perigo de bullying. 

Então, ao cair da tarde, nos sentaríamos em roda no colo de nossa mãe e nos contaríamos histórias. Nossas histórias. E falaríamos de nossos sonhos e medos. Tudo para ela escutar. E depois ela nos falaria da vida e de seu medo de que tudo acabe como em um jogo de faz de conta onde se pode morrer e matar.

Acho que poderia ser um bom presente e nem precisaríamos de grandes caixas douradas e brilhantes laços de fita.

Só nós e a Terra. Nós. Todos nós. Todos nós, mesmo.

Sei não... Pra este ano não dá. Tínhamos de ter combinado com mais antecedência. 

Quem sabe ano que vem? Talvez no próximo ano?

É... Se sobrevivermos às nossas brincadeiras de deus... Quem sabe?

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A ESTRADA


(Não, nada a ver com Fellini ou sua Giullieta Masina.)

A estrada é minha. Própria. Intransferível.

O caminho que me cabe. O caminho que me traça. O caminho que me trama. No caminho, caminho.

Um traço marcado na areia. Um risco lavrado na terra. Destino.

Às vezes, atalho. Às vezes, uma ponte. Às vezes, vereda. Às vezes, uma highway. Às vezes, sendeiro sem saída.

O caminho que me cabe cabe na palma da mão. Entre linhas tortas. De vez em quando, o guardo entre dedos. Outras vezes, o solto feito passarinho.

Já passou por muito túnel... Ele, o caminho. Já subiu muita montanha. E se perdeu por desertos e se embrenhou por florestas e atravessou tanto rio.

Me leva por sua mão. Me impõe a caminhada... Ela, a estrada.

Sem mapa, a sigo por intuição. Sem bússola, vou só seguindo. Nem olho pro céu pra não me perder nas estrelas. Só sigo. Um passo atrás de outro passo. Poeira, pedra ou lajota.

Às vezes, uma fonte. Às vezes, abismo.

Por que paragens me leva? Em quais paradas descanso? Com quem, ao acaso, me encontro? Sei lá... No caminho, caminho.

Minhas pegadas...  Saltos altos... Scarpin apertando o mindinho... Botas pra me proteger... E muito pé descalço, que o tempo cultiva bons calos.

No apressado dos passos, nem sei se realmente deixei marcada na estrada uma pista de tanta encruzilhada. 

Só espero que no emaranhado desse mapa invisível que não consigo decifrar, exista uma linha reta. Uma linha. Que me leve a uma praia pequena e de água tranquila. Onde, algum dia, eu possa molhar os meus pés... Lavar o meu rosto... Refrescar os punhos e a nuca...

E, finalmente, poder mergulhar. De corpo inteiro. Num infinito tchibum! Ir até o fundo do fundo, tomar um empuxo com o pé e, na volta, chegando à tona... Respirar. Fundo. Tão fundo. 

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)