Quando dei por mim, estava sentada no chão, olhando para a porta do forno com um olhar vazio e suplicante como o daquelas pessoas que, em peregrinação, se reúnem para ver um OVNI, uma imagem sagrada ou mesmo Deus (em carne e osso?). Na mão esquerda, agora tombada pelo cansaço, o manual de instruções do fogão.
Eu, a pessoa mais cinestésica que conheço, vencida pela modernidade. Sou do tipo de gente que compra um eletrodoméstico, chega em casa, o retira da caixa, pluga o bicho na primeira tomada e começa a apertar todos os botões até que ele funcione satisfatoriamente. Sei que com isto perco mil e uma gracinhas que estas máquinas pós-modernas podem fazer. (Até hoje não sei como tirar fotografias com aquele timer que permite que o fotógrafo saia também na foto), mas sobrevivo. Pelo menos até agora.
Há um tempão Silvio queria comer um franguinho assado. Aguava quando falava no assunto. Eu já estava achando ele com cara de Dom João VI. Então, tomei coragem, comprei o frango (já limpo, higienizado, congelado, prontinho para encarar o fogo), chequei nos antigos alfarrábios maternos como se faz um frango assado, preparei os temperos (como não tinha limão, decidi dar um banho de tequila na ave) e me preparei para a ação. Foi aí que a coisa pegou...
Enquanto estava no México, deixei uma arquiteta para arrumar o apartamento para a nossa chegada e ela, sabendo que Silvio é gaúcho, me sugeriu que comprássemos um fogão que também faz churrasco. Achei a idéia ótima e soltei a imaginação.
O meu super fogão seria quase um Porcão portátil. Miraculosamente, saltariam dele picanhas fatiadas, salmão grelhado com molho de laranja, coraçõezinhos crocantes, um aipinzinho frito e até, quem sabe, um sushizinho de quebra. Seria um fogão Harry Potter para ninguém botar defeito. Mas... quando cheguei, levei três dias só para entender como ligava suas bocas de fogo. (Agora, está OK. Viro o botão e a chama surge. Só tem uma boca que ainda me traz problemas, pois o usuário tem que ficar segurando o botão por uns quinze segundos até que a chama fique ligada. Vocês entendem, questão de segurança... Está escrito no manual!).
E agora, lá estava eu, sentada no chão, tentando entender o forno. Afinal, o franguinho assado seria feito no espeto que faz parte do kit. Como uma analista lacaniana, observava em silencio respeitoso aquela porta que, fechada, indicava um enigma. (Persevere, Patricia, você tem tempo. Na verdade o dia todo. Hoje o frango assado no espeto sai de qualquer jeito!).
Comecei com boa vontade, como se fosse ler o mais novo romance de Isabel Allende, mas com o virar das páginas, ilustrações e texto foram me vencendo. Até porque muitas vezes umas não falavam com as outras. Não resisto a fazer uma pequena citação... Vicio de tempos acadêmicos:
"Atenção! Caso os botões das funções e/ou temperaturas não sejam movidos na posição desligado "O" o forno continuará funcionando na função e temperatura selecionadas."
Em suma, se você não desligar o forno, ele continuará funcionando!!!! Pelo menos foi isso que eu entendi.
Perdida em redundâncias e aridez textual, cheguei a um impasse. Para assar o meu franguinho que já estava devidamente embriagado de tequila e acompanhado de rodelas de cebolas e ervas finas, eu teria de desvirginar o forno.
O manual indicava um ritual místico para iniciados. Eu teria de ligar o forno na temperatura máxima por quarenta minutos até que todos os vapores e cheiros de óleo, graxa e sei lá mais quê saíssem. E, importante, a ventoinha teria de ligar automaticamente, caso contrário eu deveria contatar imediatamente a assistência técnica. Hesitei... E se a ventoinha não liga e o treco explode?
Como uma sacerdotisa que eleva a adaga para cravar o coração da virgem a ser sacrificada, fui virando o botão bem devagar. Mãos trêmulas, respiração entrecortada. Aos poucos, um ventinho quente começou a sair por cima da porta do forno direto nos meus olhos... A ventoinha tinha ligado. (O frango ia sair!!! Exultei!)
Fui me levantando aos poucos, como evitando quebrar um momento mágico. E, quando cheguei na sala, descobri que todos os cômodos da casa tinham sido invadidos por um cheiro insuportável de óleo queimado. Se ainda fosse incenso... O ritual se cumpria. Agora era só esperar. Depois de quarenta minutos, tudo iria estar bem e eu poderia enfiar o frango no espeto e assá-lo. (Tudo por amor a Silvio!)
Os quarenta minutos se passaram e o cheiro continuava o mesmo. (Teria a virgem um hímen complacente?). Voltei ao manual... Silêncio. Será que tem um volume dois, só para iniciados? Devo buscá-lo na Amazon? Decidi fazer o que indicava o desespero. Fazer tudo de novo. O cheiro tinha que passar.
Mais de duas horas depois de começar o PFANE, isto é, projeto frango assado no espeto (também sou moderna e sei criar siglas!), olhei para a vasilha com a ave bêbada... Perscrutei as cebolas... Tudo meio esverdeado pela ação das ervas finas... E... decidi. Enfiei tudo em uma panela. Liguei uma das bocas do fogão (Não aquela que demora) e fiz um franguinho de panela.
À noite, depois de servir o jantar, perguntei se Silvio tinha gostado. Ele sorriu com carinho. Disse que estava tudo muito bom, mas... bem que o frango podia ser assadinho.
Aí enfraquece a relação!!!!
PS: Indico a leitura do primeiro comentário, de Valeria G. Definitivamente complementa o texto.
(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)