domingo, 25 de janeiro de 2009

DE PIRÂMIDES E DE MONTANHAS


A foto acima é do Pico Bolívar, cidade de Mérida, ponto mais alto dos Andes venezuelanos, com 5007 metros de altitude. Na Venezuela, a cordilheira dos Andes fecha seu ciclo. Já não há tanta neve como em outros países. Os picos já não são tão altos. Na Venezuela, a cordilheira cumpre seu trajeto e não ousa chegar ao mar.



..........................................................

Em 2002, estive na cidade do México com um grupo da Cultura. Estávamos participando de um congresso e, entre palestras, contatos de negócios, visitas a expositores, tivemos tempo para visitar a região, inclusive os sítios arqueológicos: as pirâmides de Teotiohuacan.
A altura da cidade já me tinha pegado. Eu sentia como que uma tontura constante que eu preferia pensar que era mais pelo excesso de tequila do que resultado de minha hipertensão.
Eu estava deslumbrada com a cidade: as pessoas, a música, os murais, a comida, o Museu (!!). Tudo me encantava, mas o que eu queria mesmo ver eram as pirâmides. O que eu desejava muito era chegar ao topo da Pirâmide do Sol. Coisas de leonina. Mas... entre o desejo e o ato pairava um medo enorme. Medo do esforço de subir. Medo de ter um piripaque. Eu, imolada em plena pirâmide por minha pressão alta.
Quando chegamos ao parque, admiti o meu pavor. Ficaria vendo as lojinhas. Daria uma volta pelo lugar. Ia esperar pelo grupo na base das pirâmides.
O pessoal, então, partiu para a subida, todos aerobicamente preparados. Todos, menos uma pessoa. Regina também ficou para trás. Eu não tinha a menor intimidade com ela. Esposa de meu chefe naquela época. Simpática, atenciosa. Mas intimidade, nem pensar. Ela me disse que também sofria de hipertensão e me convidou: “Vamos subir. Vamos devagar. A gente vai parando. Eu acho que dá pra chegar”. Entre meu desejo e meu medo, pairava agora um convite, um apoio. Motivação. E assim, fomos subindo. Aos poucos. Bem devagar. Às vezes, ela sugeria, “vamos parar aqui” e ficávamos olhando a paisagem. Imensa. Deslumbrante. Outras vezes era eu, que arfando, pedia para parar. Fomos subindo assim, medindo limites. Até hoje acho que ela parou muitas vezes só para eu descansar. Fomos falando de coisas. Fomos falando de nossas vidas. Parávamos, olhávamos aquele mundo e continuávamos subindo. Até que, de repente, já era o topo. Eu tinha chegado ao alto da Pirâmide do Sol. Como boa leonina, exultei. Nos abraçamos. Tiramos uma foto para a posteridade.
O que Regina não podia imaginar é que, naquele momento, ela tinha me dado um presente muito maior. Ali, bem no topo, eu entendi que eu também podia escalar pirâmides. E quantas eu ainda iría encontrar por minha vida! Se as de pedra são difíceis, as abstratas parecem cruelmente intransponíveis.

.............................................................

Mérida foi o primeiro lugar que quis visitar quando cheguei à Venezuela. Cidade encravada nos Andes. Era tudo de que gosto. Fria, aconchegante, com boa comida e lugares exóticos como La Capilla de Piedra e La Laguna Negra. Mas, logo que chegamos a Caracas, houve um grande acidente aéreo em Mérida em que todos os passageiros morreram e isto nos assustou bastante. Fomos adiando a viagem. Até que, em um feriado grande, lá fomos nós.
A viagem foi dividida em duas partes: saída de Caracas com um amanhecer fantástico, decolagem perfeita e depois uma turbulência cada vez mais forte, neblina intensa, muita chuva.
Aterrissamos em um aeroporto pequeno. Como havíamos comprado um pacote turístico, estava combinado que a agência faria o nosso transfer para o hotel, mas ninguém nos esperava. As pessoas foram indo embora e nós lá esperando. Decidimos tomar um táxi e perguntamos ao taxista se só havia um aeroporto no lugar, ao que ele confiante nos respondeu que sim. Pedimos para ir para o hotel.
Silvio não estava se sentindo bem desde o dia anterior. Estava com febre. Entrou no carro e apagou. E lá fui eu, monitorando o motorista por caminhos que eu não tinha idéia de onde chegariam.
Depois de quase uma hora de viagem, por montanhas, rios e uma vegetação ocre e rasteira, achei que havia algo errado. Afinal, o hotel não podia ser tão longe!
Acordei Silvio, quando li uma placa: Mérida a 80 KM!!!
Perguntava ao taxista, em meu espanhol de pé quebrado e mãos atadas, o que estava se passando e ele só dizia que estávamos chegando.
Só depois de chegar ao hotel foi que entendemos o que aconteceu. Como o tempo estava muito fechado, o avião posou no aeroporto de El Vigia que fica a uns cento e muitos quilômetros de Mérida e que tem uma infra-estrutura melhor. Se o piloto avisou aos passageiros da mudança, nós perdemos esta informação.
O dia seguinte foi dedicado a curar Silvio de sua virose. Só no outro dia, pudemos conhecer a cidade. Mérida foi um misto de curiosidade e uma certa frustração. A cidade em si não tem nada de especial. Apesar das montanhas a sua volta, não dá muito para se ter a sensação de que se está no meio dos Andes. Em compensação, os seus arredores, os chamados Páramos, espécie de platôs nas montanhas, são lindíssimos.
Nosso guia se chamava Gabriel, guia turístico e professor de lutas marciais(!). Morava em uma fazendinha em um pueblito próximo a Mérida. Fizemos amizade com ele o que gerou quase um novo pacote. Ele nos mostrou recantos, cachoeiras, pueblos, que ficavam fora do roteiro, mas que certamente fizeram de nossa viagem algo inesquecível. As árvores dos Páramos são um capítulo à parte. Indescritíveis.
Tudo ia bem a dois mil e muitos metros de altura, mas e o teleférico? E o Pico Bolívar? E os quase cinco mil metros? Era tão alto que sequer nós, que já estávamos há três dias na cidade, conseguíamos vê-lo.
Silvio tem um grave problema, não pode ver um teleférico que tem que subir. Eu, apesar de toda a minha experiência no México, estava preocupada. Afinal, as pirâmides eram mais baixas e eu era mais jovem. E Silvio insistindo em ir ao teleférico.
Para meu alívio, como era feriado, as entradas para subir estavam esgotadas. O meu medo não seria o responsável pela não ida ao topo. E afinal, onde estaria o topo? A neblina continuava forte, não dava para se ver o Pico.
Silvio não se deu por vencido. Se não podemos ir ao Pico Bolívar, sigamos pelos Páramos até o Pico Áquila. O guia incorporou o grande mestre Kung Fu e levou a nós, seus gafanhotos, montanha acima. E eu repito: A-CI-MA!!!!!!
Estrada, nuvem, neblina, montanha, refúgios de condores, cada vez menos árvores, vegetação rasteira, frio, luvas, neblina, capelinhas, riachos, rios, pedras, fotos, derrumbes, curvas, curvas fechadas, curvas fechadíssimas, monumento! A minha frente estava uma águia enorme de ferro. Uma pequena feirinha. Uma capela. Neblina. Eu estava a 4.118 metros de altura! Novamente a sensação de vitória. O guia me perguntou se eu estava mareada. Estava. Mas tinha chegado mais alto do que jamais poderia imaginar.
No dia seguinte, era nossa partida. Acordamos cedo para fazer um recorrido rápido pela cidade. Abri a janela do quarto e lá estava ele, inteiro, imponente, coberto de neve. O Pico Bolívar. Por toda noite havia nevado em seu cume. Mediu-me à distancia como se me dissesse “te espero da próxima vez”.

............................................................

Acho que a vida é assim. Muitas pirâmides e picos a desbravar. Muito medo de subir, de se perder, de ser imolada pelas grandes alturas. Muita vontade de ver o horizonte lá, bem do alto.
Que eu sempre tenha um amigo que por carinho, paciência ou solidariedade, fique para trás comigo e me diga de forma suave e convincente: “Vamos subir. Vamos devagar. A gente vai parando. Acho que dá pra chegar”.

(para Regina Vasconcelos)

(in à vista del ávila)



sábado, 17 de janeiro de 2009

UM DIA EM SINAMAICA

Bragança me telefonou no inicio da semana. Ele e Silvio iriam a Maracaibo a trabalho na quarta-feira e, como Soraya havia acabado de chegar à Venezuela, ele pensou que seria uma boa oportunidade para nós duas conhecermos uma outra região do país. Achei a idéia ótima. Quando saí do Brasil, já tinha o plano em mente. Silvio viajaria a trabalho e eu sempre iria com ele. Afinal, alguém tem que se divertir.
A primeira vez que encontrei Soraya, foi em um jantar em Porto Alegre. Conversa super interessante. Ela, professora de literatura. Esperta. Atenta. Um papo maravilhoso. Em Maracaibo, nós ficaríamos a maior parte do tempo juntas e sem os maridos, mas pela mostra do sul, faríamos uma boa parceria. Era claro que tínhamos uma coisa forte em comum: uma curiosidade patológica.
Convite aceito, era hora dos preparativos, que em caso de viagem por terras venezuelanas, sempre implica em se ter uma reunião informativa com Claudia, minha professora, que abrange o que ver, comer, beber, ouvir, experimentar no local a ser visitado.
Uma das coisas que aprendi com ela, e com todas as demais pessoas a quem contei que ia a Maracaibo, era que a cidade “es muy calurosa!!!”. O que para mim, carioca, habituada ao Rio 40 graus, não chegava a assustar. Além disso, eu já sabia que há uma rixa entre caraquenhos e maracuchos, tipo Rio X São Paulo, e achei que tinha um tanto de exagero nos comentários. Tão logo chegamos, na quarta-feira à tarde, eu entendi perfeitamente a expressão ledo engano. Maracaibo é uma cidade plana, limpa, mais moderna que Caracas, com um lago cheio de poços de petróleo, uma ponte deslumbrante e tudo isso vem embrulhado em uma temperatura... INFERNAL! Para quem conhece, imaginem a São Clemente, em pleno janeiro, ao meio-dia. É assim, só que é meio-dia o tempo todo.
Como há sempre um lado positivo em tudo, o calor me levou a conhecer uma das guloseimas da cidade: o sepillado, uma espécie de sorvete que acho que no Brasil a gente chama de raspadinho. Tomei muitos sabores, sendo minha preferência, por razões óbvias, o de limón. Como mata a sede!
Quinta-feira de manhã, os maridos e nós acordamos cedo. Eles vestidos a caráter: terno, gravata e pasta executiva. Nós também: bermuda, camiseta e máquina fotográfica. Maracaibo, aí vamos nós!
Na recepção do hotel fomos informadas que podíamos conhecer a cidade com um taxista de confiança, Sr. Richard (há muitos Jonathans, Richards, Jarolds no país). Eu, com minha lista de coisas a fazer, perguntei se podíamos ir a Sinamaica, que para mim era como conhecer os arredores da cidade. Novamente o profundo entendimento da expressão... ledo engano. Os recepcionistas se entreolharam. De imediato fizeram algumas observações sobre os brilhos que Soraya trazia: colar, pulseira, anel. Era melhor retirá-los. Poder, a gente podia ir, mas era melhor falar com o motorista para organizar a coisa, afinal Sinamaica ficava a quase duas horas do centro da cidade, em território dos índios guajiros.
Cabe explicar o nosso interesse no lugar. Sinamaica deu origem ao nome Venezuela. É uma região de mangues e canais, uma pequena Veneza. Os índios vivem em palafitas nesses canais. Um lugar exótico o suficiente para alimentar nossa curiosidade. Tínhamos que visitá-lo.
Encontramos Sr. Richard na entrada do hotel. Ele, um mulato alto e forte. O seu carro, um rabo-de-peixe, branco por fora e vermelho por dentro, modelo década de 60. Acho que não há táxis novos em Maracaibo. Há os velhos e decadentes e os antigos e bem cuidados. O dele era do segundo tipo.
Sr. Richard nos ofereceu fazer um recorrido. Dar um rolê pela cidade e depois irmos a Sinamaica. E assim o fizemos. Conhecemos o bairro de casas coloniais recuperadas, praças, o teatro, o mercado e a catedral, onde está La Chinita. Uma imagem milagrosa. Lugar de muita energia. E tome sepillado! Lá pelas 11, seguimos para nossa aventura.
À medida que nos afastávamos do centro da cidade, entrávamos em subúrbios de casas simples e pequenas e começamos a ver mulheres com vestidos coloridos, largos e longos, como aquelas mortalhas do carnaval baiano na década de 70. Estávamos entrando na região dos guajiros. Tudo ao longo da estrada. Não era propriamente uma tribo, era como estar no interior do Brasil. Nordeste talvez. Tudo muito colorido e simples. A partir de um momento, começamos a ver carros com galões de gasolina e fomos informadas por Sr. Richard que, como estávamos próximos à fronteira com a Colômbia, havia muito contrabando de gasolina na região. Continuamos indo.
De repente, começamos a ver patrulhas do exército venezuelano. Parecia que a cada kilômetro havia uma nova patrulha. Sr. Richard nos explicou que, como aquela era a estrada para a Colômbia, era uma carretera muito usada pelo narcotráfico e por isso as barricadas. Continuamos indo.
De repente, a estrada estava ladeada apenas por mangues. Era uma visão bonita, mas aí Soraya disse o que eu não queria ouvir. “Se acontece algo com a gente aqui, ninguém sabe onde estamos.” O celular já não pegava. Sr.Richard pouco falava. No rádio, aos berros, gaitas, ritmo típico de Maracaibo. Continuamos indo.
De repente, chegamos a um lugar arborizado. Dava para ver uma casinha, tipo quiosque e um pouco além, as margens de um rio. Sr. Richard nos explicou que íamos almoçar e depois tomaríamos um barco para visitar as palafitas. O carro parou em frente ao “restaurante”. E foi ali que comi tajadas,banana da terra frita e um delicioso morrito de pescado, peixe feito com coco.
De repente, una culebra!!!! “Sr. Richard, aquilo ali é uma cobra?”; “Sim, mas não se preocupe. Não há problema”. Um grupo brincava com uma cobra verde de mais de um metro. Brincaram até matá-la. Continuei comendo, que sou bom garfo, mas em posição de lótus. Também entoava um mantra: “Cadê a cobra? Cadê a cobra?”
O taxista negociou o preço com o barqueiro. E na hora de entrarmos no barco, pequeno e de madeira, nós duas convidamos, de forma enfática, o bravo Sr. Richard a nos acompanhar. Naquele momento, ele era o ser mais próximo e intimo que tínhamos a nosso dispor.
Começamos, então um passeio inesquecível. A região é muito extensa. Muitas casinhas em palafitas espalhadas pelos canais. Casas mais cuidadas, casas pobres, choupanas. Muitas crianças barrigudas brincavam nas águas. Muitas mulheres, com suas mortalhas, trabalhavam em suas casas. Muitos homens jogavam conversa fora ao redor de mesinhas cheias de garrafas de cerveja. Tinha palafita escola, palafita igreja, palafita posto do governo, palafita pousada. Tinha pássaros e céu azul. O barco foi se embrenhando cada vez mais pelos canais. Em um momento, Soraya pediu ao barqueiro para parar o barco. Pensei: “Ficou maluca!!!” O barqueiro parou o tuc-tuc do motor e nós pudemos ouvir, entre as águas e a sombra de muitas árvores ... o silêncio. Enorme!!
A tarde foi caindo aos poucos. Tempo de voltar.
O caminho de volta, como em um filme passado ao reverso, foi rápido e sem surpresas. Chegamos ao hotel para recepcionar os meninos trabalhadores e bem na hora de assistir a um deslumbrante pôr de sol no lago. Tínhamos tantas fotos e tanto para contar! A noite chegou enquanto contávamos nossa aventura e pudemos ainda ver, ao longe, os misteriosos relâmpagos no lago que ninguém sabe explicar como surgem no céu.
Sempre que falamos para as pessoas aqui em Caracas e mesmo para o pessoal de Maracaibo o que fizemos, há um certo espanto, quase horror, nos olhares. Soraya jura que faria tudo de novo. Quanto a mim, especialmente depois de imaginar que as FARC podiam estar próximas daquela região, prefiro agradecer a oportunidade que tive, mas, como dizem os venezuelanos: “!Vamos hacer borrón y cuenta nueva!” Isto é, prefiro partir pra outra.

(in à vista del ávila/ blog)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

UM POUQUINHO DE MIM (para Cida e Eulália)


Não sei se foi o Natal ou se é este inicio de ano em terras caraquenhas, com uma temperatura quase inverno e dias bem limpos e claros como os de outono no Rio. Dias de luz branca que Ricardo adora e que me ensinou a curtir há muito tempo. Não sei se foi estar longe de tios e primos e de amigos queridos desde outubro passado, mas a verdade é que tenho andado com saudades. Pode ser também por causa dos emails cada vez mais filosóficos que Cida e eu temos trocado ou resultado da leitura dos textos de Eulália que me remetem a tempos há muito idos. Não sei o que foi. Ou será que foi tudo isso junto? O fato é que tenho lembrado das pessoas, revivido experiências, me reencontrado com momentos felizes e tristes que fizeram a história de mim.
Logo que comecei a fazer análise, há muito tempo atrás, dizia para minha analista que ninguém muda. Pode ampliar seu escopo de compreensão das coisas, seus insights, sua capacidade de ver e sentir, mas mudar, mudar mesmo, ninguém muda. E agora, enquanto reviro minhas gavetas reais e abstratas, me descubro assustadoramente camaleoa. Quantas peles e escamas ficaram ao longo deste caminho chamado tempo!
Nunca fiz diários, mas como andei escrevendo pela vida, os textos ficam como instantâneos (fotos Kirlian?) do que fui, senti e vivi.
O poema que segue é inédito. Tão inédito que nem Cida, a maior especialista em minha obra (!), o conhece. Acho que já o li uma vez para Eulália quando ela me visitou na Bahia, mas foi só uma vez e nem sei se o li mesmo.
Eu escrevi este texto poucos meses depois de meus pais terem falecido. Eu morava sozinha numa casa de dois andares em Niterói. Sozinha, não. Era eu e Menina, minha cadelinha. Eu ainda não conhecia Silvio (iria conhecê-lo dois meses depois) e era como se tudo estivesse começando de novo.
Há uma coisa mágica na releitura do texto. Ele pode ser dividido em duas partes, uma mais acinzentada e outra em cores primitivas e fortes. Uma referente a São Paulo e outra referente à Bahia. Menciono outros lugares, mas as cidades-âncora no texto são Sampa e Salvador. As duas cidades onde, coincidentemente, tempos depois, vim a viver com Silvio antes de virmos para Caracas. Premunição?
Quanto às duas personagens do texto: Menina já não existe mais e eu ... eu continuo gostando de São Paulo e da Bahia, mas muita água já passou por baixo de minha ponte, o que fez com que minhas pedras perdessem as arestas, ficassem mais roliças. Me nego, no entanto, a mudar o titulo do poema, ele é sem dúvida, um pouquinho de mim.


PATRICIA
(maio de 1996)

gosto de São Paulo
e das pessoas de São Paulo
e dos viadutos
e de tomar sorvete no Ibirapuera
(parque casa chão de todos os rostos)
gosto do cinza São Paulo de São Paulo
(tráfego tráfico marginais)
gosto de tomar café em Higienópolis
depois de jantar no Castelões
gosto de ler jornais em praças
gosto de São Paulo e de seus jacarandás

prefiro os dias de chuva
porque cinza
porque silêncio
porque agora
não há euforia nos dias de chuva

moro numa casa casa
com portas e janelas que dão para um
jardim quintal
moro eu e menina
(minha cadela)
fêmeas de diferentes raças
tão frágeis e furiosas
vendavais
ambas soltamos pelos
olhos castanhos
de cor igual
ambas cavamos ninhos
para invisíveis ninhadas

nos fazemos agonia e companhia
brigamos ambas
arranhamos ambas
ela late eu grito
marcamos nosso território
ambas gostamos do sofá

gosto de ouvir jazz nos dias de chuva
anônimo jazz
(nunca sei quem está no CD)

sou uma leonina sem ninhada
que nos dias de chuva
aprecia estar só

cada vez mais gosto do frio
de neve
de um cinza céu cinza
casaco pesado
lábio por rachar

o aconchego está nas palavras
(a poesia minha eterna companheira)
minha palavra
minha fala no espelho

gosto de contar estórias
para quem quiser escutar

gosto cada vez mais das manhãs de maio
(continuo um caso raro de outono tropical)
folhas amarelecem dentro de mim

saudades da Bahia
saudades de mim na Bahia
olhar enviesado para esta espécie de Nápoles
(franja de Salvador)

saudades do mormaço/aconchego
das manhãs de chuva de Salvador
saudades de todas as minhas certezas
de meus sonhos de menina tão menina
menina
menininha

castelos de areia em Arembepe
farol de Itapuã
meus medos em Conceição da Praia
eu em Mont Serrat
(Senhor do Bonfim olhai por mim
me traz luz
me traz)

quem é esta Patricia tão saudade
quem é esta Patricia tão Nazaré das Farinhas
(intermezzo-
um quase chegar)

saudades de mim e de meus medos
tão tolos medos em noites de Escócia
(castelos no ar)

me acordo
me visto
me dou colo
me arrumo pra vida
e vivo
o que há de vida na vida que me cabe

que saudades de uma Patricia
menina/boneca/Lisboa

bebo um whisky
arrumo a casa
lavo a roupa da semana
e divido o sofá com menina
(minha cadela)
ela e eu sobreviventes
dos dias de céu azul

Nota: A foto é do mar de Mochima, Caribe venezuelano. Nem acinzentados, nem cores fortes, apenas transparência.

(in à vista del ávila)

sábado, 10 de janeiro de 2009

UM CASAL INGLÊS E OS PIRATAS DO CARIBE

Antes de tudo, quero registrar que não farei a minha reforma ortográfica até que me expliquem por que se grafa paraquedas sem hífen e pára-brisa com hífen. Acabo de chegar de Porto Alegre onde comprei meu primeiro livrinho sobre as mudanças. Fui bem na leitura até chegar ao hífen, aí a coisa se complicou. Resisti, mesmo quando heróico e idéia perderam seus acentos. Entendi que era uma questão histórica, mais do que gramatical. Afinal, os pobres heróis (acho que também sem acento) dos povos de língua luso-afro-americana carecem de tantas coisas que a perda de um acento aqui outro acolá não lhes trará maiores problemas. Quanto a idéias, a retirada do acento só reforça o quão empobrecidas elas têm andado em nossos países. Mas, até que me elucidem todas as implicações com referência ao hífen, permaneço na ortografia antiga, o que me faz sentir um tanto fora de moda.

Agora, imaginem um casal inglês. Ele em seus early-fifties e ela confessadamente seis anos mais velha. Imaginem um casal inglês, do interior da Inglaterra, que teve como viagem mais distante e emocionante, uma ida à Escócia. Ele recém-aposentado, depois de gerir, por toda a sua vida, a fábrica de móveis que foi o negócio da família por mais de um século. Decidiu vendê-la, quando descobriu que as pessoas “não estão mais interessadas em qualidade. O que interessa agora é preço baixo e rapidez na entrega”. Ela não me disse o que fazia, mas me segredou que ele era seu terceiro casamento. Ambos altos, ele já bem calvo, ela com cabelo grisalho e cortado à inglesa. Ambos com lindos olhos azuis... Agora imaginem este casal em pleno Caribe venezuelano.

Uns dois dias depois da nossa chegada a Morrocoy, quando íamos tomar o café da manhã, Oscar, o gerente da pousada, nos apresentou a Richard e Sandy. Simpáticos, nos convidaram para desayunar em sua mesa. Bem junto a Sandy, como um amuleto de sorte e sobrevivência, pude ver um daqueles famosos livros de viagem que têm títulos de grande impacto, como Speak Spanish in 5 minutes! Na primeira interação de Sandy com a garçonete, pude ver que ela ainda estava no primeiro minuto de seu aprendizado. O resultado imediato dessa carência lingüística foi que me transformei em tradutora oficial. Ela dizia, “Buenos dias” e eu completava com o seu pedido de huevos revueltos con jamón y queso.
O papo foi ótimo. Silvio diz que eu tenho um talento especial para bater papo com pessoas absolutamente desconhecidas. Eles tinham vindo à Venezuela para assistir ao casamento de um sobrinho de Sandy. Iam tomar café e depois sairiam com uns parentes da noiva, donos de um dos hotéis em Morrocoy. Mas quando fomos pegar a lancha para ir a praia, eles também estavam no cais e nos perguntaram se podiam ficar com a gente, pois a saída com os amigos venezuelanos tinha sido cancelada. Sandy me disse que não iriam atrapalhar e que ficariam a uma certa distancia na praia (!).
Breve pausa para fotos. Richard usava uma bermuda caqui e camisa verde. Tinha um daqueles chapeuzinhos de lona, de aba curta, que ficam meio disformes quando se põe na cabeça. Sandy, com bermuda caqui e blusa branca. Ambos tinham em mãos um daqueles famosos pocketbooks que acompanham a todos os ingleses em suas viagens.
Tomamos a lancha e indicamos a praia onde queríamos passar o dia. Nesta pousada, o sistema é assim, a lancha te leva para a ilha que você quiser. Oferecem um guarda-sol, cadeiras, uma mesa e uma geladeirinha (que se chama cava por aqui) com o almoço. Frutas, ceviche e bebidas. Tudo para você ter o maior conforto por todo o dia. Decidimos ir a Paiclá, uma ilha tranqüila que fica bem em frente a Isla de Los Pájaros, um ninhal de garças, coro-coros, gaivotas. Um lugar incrível.
Enquanto nos deslocávamos, eu, como a mais nova guia de turismo de Morrocoy, ia descrevendo a região e falando das delicias de se estar em uma praia deserta, com mar tranqüilo e muito sol. Ilhas desertas e paradisíacas, só mesmo no Caribe.
Chegamos a Paiclá e a paisagem foi mais eloqüente do que qualquer descrição. Tudo perfeito. Ramón, o barqueiro, depois de armar nossos acampamentos com a distância necessária para uma certa privacidade britânica, partiu, prometendo nos buscar por volta das quatro e meia da tarde.
Em minutos estava estabelecido o cenário. Silvio em atitude vegetativa ao sol. Eu dentro d’água, buscando peixes e corais. Desde criança sempre quis ser mergulhadora. E o casal, já de sunga e biquíni, lendo pocketbooks. A paz reinava em nossa ilha deserta.
O tempo ia passando e as únicas coisas que se moviam eram as folhas das palmeiras e as dos livros dos ingleses. Silêncio. Serenidade. O casal interrompia eventualmente a leitura para sorver a tropicalidade do instante. Ao longe, se podiam ouvir alguns pássaros. E foi também ao longe que eu vi se aproximando um barco.
Breve pausa para fotos. Imaginem um rebocador velho em que, por sobre muitas camadas de ferrugem, foi aplicada uma leve camada de tinta branca. À medida que se aproximava, dava para ver o seu nome, NORWAY, e como complemento, “minicruceros, una manera diferente de disfrutar la mar!” Dava também para ouvir o som ensurdecedor de salsa que saia de seus muitos alto-falantes. Dava para ver os muitos turistas bailando em seu ... diagamos assim... deck. Pensei, estão só passando ao largo. Vão visitar outras ilhas. Mas, quanto mais o barco se aproximava, pela movimentação da tripulação, podia-se ver sua decisão de ancorar. E foi isso que fizeram, exatamente na frente do acampamento do casal inglês. O som mais suave que ouvi saindo dos alto-falantes foi Macarena!
Uma coisa que aprendi é que estes barcos são acompanhados à distância por outros barquinhos que servem comidinhas as mais variadas: ceviches, moluscos, pescados, maionese e salada de frutas. Trazem também sorveteiros e massagistas para o deleite dos turistas.
Breve pausa para fotos. Uma parte dos navegantes estava na praia, comendo e bebendo muito e a outra permaneceu no barco para fazer um ... karaokê!!!! A inglesa tirava mil fotografias. O inglês permanecia com seu livro na mão, mas me pareceu bem mais interessado nos biquínis das venezuelanas. E Silvio estava cercado de duas nativas sendo massageado, a quatro mãos, com cremes naturais. Eu continuava na água, mas meus amigos peixinhos tinham desaparecido.
Quando Rámón, o barqueiro, chegou para nos buscar, a festa tinha diminuído um pouco. Até porque, por mais forte que se seja, a mistura de muita cerveja e whisky causa um certo torpor.
Ramón recolheu toda a nossa equipagem ao som de merengues. Subimos no barco. Sandy, Richard e eu levemente roxos e Silvio totalmente bronzeado e muito relaxado. Acho que a massagem e os cremes eram bons mesmo. Tirando a troca de enigmáticos sorrisos, até aquele momento, eu não havia falado com os ingleses. Foram eles que tomaram a iniciativa. Estavam delighted! Nunca tinham visto nada igual! Que alegria! How tropical!!!Teriam muito que contar aos amigos em Exhall.
Diante de tamanho entusiasmo, decidi oferecer a eles, quando chegamos à pousada, um drink brasileiro que eu sei que os venezuelanos adoram preparar: uma caipirinha, com vodka, porque o bar não tinha cachaça.
Breve pausa para fotos. Vimos o cair da tarde no cais, tomando caipirinha e falando de coisas do Brasil, da Venezuela e de... Exhall que fica perto de Alcester.
Como bons súditos da rainha, o casal fez com que nossos papos de cair da tarde se transformassem em tradição. Pelos dias que se seguiram e em que ficamos juntos nos passeios por Morrocoy, ao entardecer sempre nos encontrávamos para jogar conversa fora e tomar aquele drink brasileiro... “how do you say... CA-I-PI-RRRI-NIA! That’s it!”