sexta-feira, 23 de maio de 2014

PAPEL PICADO


Ficou decidido que veríamos os jogos lá em casa. Todos concordaram que jogar papel picado das janelas de um décimo andar seria algo super legal. Naquela época, quase todos da família moravam em casas... Com varandas e quintais.

Papai era o mais animado. Algumas semanas antes do início da Copa, já tinha coletado uma enormidade de jornais que todos nós, crianças em fase de adolescer, adorávamos picar para deixar já tudo bem preparado para todas as vitórias. Não havia dúvida, iríamos ganhar.

Foi com muita discussão que organizamos os comes e bebes. Ficou combinado, sanduíches e refrigerantes. Tinha cerveja também, mas só para os adultos. O que não impedia que déssemos desavisados golinhos na cerva quando os dribles nos permitiam. 

Foram dias de início de inverno bem quentes e não importava que a seleção estivesse tão longe, em terras mexicanas. Éramos todos uma só emoção. Todos, um só coração. 

E vieram os jogos, os gols, os gritos de alegria, a festa nas ruas. Éramos poderosos! Imbatíveis! Todos vivíamos em um milagre. Todos, um só coração.

Nossos pais eram jovens e nos pareciam felizes. Nós éramos crianças, com um pé de nada na adolescência,  e éramos seus cúmplices no pacto com esta felicidade.

Éramos simples... Provincianos... Primários, talvez... Mas tínhamos visto o homem chegar à Lua, pouco antes, menos de um ano antes. Sonhávamos sonhos infantis e, por isso mesmo, despudorados e hiperbólicos.

Os anos de chumbo ficavam encobertos por dias de céu azul. A isso, talvez, se possa chamar de infância. 

Era a nossa primeira Copa de verdade. Não lembrávamos bem de 58 e 62 e queríamos esquecer 66. Roíamos as unhas. Rezávamos em voz alta e fazíamos promessas jamais cumpridas. E, talvez porque Deus soubesse que eram barganhas infantis, ganhamos a competição.

Toneladas de papel picado despejadas pelas janelas. Batucada pelas ruas. Muito samba, suor e gargalhada. Fantasias de papel crepom e gigantescos balões, politicamente incorretos, carregados de fogos de artificio. 

Papel picado!

Papel picado...

Muito papel picado.

As noticias dos jornais vagando ao vento... Se misturando... Se perdendo no tempo e na História.

Depois vieram outras Copas. Vitórias e derrotas. Outros dribles. Estes mais duros. Fomos virando Garrinchas, com nossas pernas tornas e nossos sonhos tontos. 

O país do futebol foi perdendo seus gramados mais verdes. O papel picado foi aos poucos, sendo feito de tratos não cumpridos, promissórias não pagas, promessas de dias melhores...

A cada Copa, ainda fingíamos ser campeões. Mesmo com os cartolas e os vira-casacas. Mudamos de uniforme e de time... Vendemos os nossos craques.

A cada Copa, ainda fingíamos... 

Mas nessa,  não posso, não dá... Tenho medo, muito medo que em breve, logo, logo, o papel que será rasgado para o festejo de poucos seja o texto, ainda que rascunhado, de nossa verdadeira história... A isso, talvez, se possa chamar de velhice... Astucia ou estultícia?   

 (in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

Um comentário:

Eulalia disse...

É... querida, não vejo as ruas enfeitadas como antigamente.

Até o ascensorista do prédio do consultório, pensativo, me diz que torce para que percamos a Copa, para que os olhos dos brasileiros não se embacem da realidade e da luta que devemos empreender em outubro...

Tempos mudados... quem diria... esbarro com uma maioria que torce para nosso time perder. No país do futebol, que sintoma cruel...

Papel picado? Parece que só se for dos políticos...e eu... seguindo a torcida do ascensorista, torço para que não percamos o foco...