sexta-feira, 3 de agosto de 2012

DE TIAS, WHISKY E ACONCHEGO



Meus pais morreram muito cedo, mas me deixaram como um legado maior suas famílias. Desde criança, minha vida de filha única é povoada por tios e tias e primos e muitas histórias.

Duas tias têm um espaço especial nesta linha riscada na palma de minha mão. Linha da vida. Curvilínea. Às vezes, forte, intensa, grossa. Outras vezes, tênue, frágil, fina. Mas em todos os momentos, lá estavam elas, como presença e presente.

Tia Dorinha, a irmã mais moça de meu pai. É minha guardiã. Ai de quem queira mexer comigo. Ela vira bicho. Vira mãe. Quanto mais o tempo passa, mais fico parecida com ela.

Tia Helena, a irmã mais velha. A guardiã das mais antigas histórias da família. Memória invejável. Para nomes, lugares, quiproquós e eventos familiares variados.

Quatorze anos de diferença entre as duas. Entre a quase caçula e a mais velha, vieram quatro meninos. E depois, ainda teve mais um. Que vigor tinham meus avós!

Tia Dorinha continua morando em Niterói e, para profundo desgosto dela, tia Helena foi morar com as filhas em São Paulo. Mas ontem, as duas estavam juntas e eu decidi ir visitá-las. Matar saudades. Que coisa boa poder ficar lá com elas a tarde inteirinha. Batendo papo. E, aí, surgiram as histórias. Algumas já conhecidas, mas desta vez... Desta vez, teve algo completamente novo. Que história! E as duas juram de pé junto que é verdade!

Estávamos falando de coisas e, sei lá porquê, contei que ano passado, em Inverness, em pleno inverno, Celina e eu pegamos uma baita gripe (até hoje acho que foi essa tal de gripe A), mas enfim, passamos uma noite inteira tossindo e infernizando o sono de todos no Bed & Breakfast. Na manhã seguinte, além dos habituais scrambled eggs, baked beans and sausages, a dona do lugar nos serviu um montão de remédios, enquanto o escocês marido dela prescrevia com a confiança de quem sabe... Some warm whisky... You should have some warm whisky!

Foi o mote para Tia Helena emendar... Daddy sempre disse isso. Para tudo ele tomava whisky morno. De dor de cabeça a dor de barriga, passando por gripes e resfriados. Também, não é pra menos, ele sobreviveu por causa do whisky.

Aí, fui eu que dei um salto. Como assim? Vovô sobreviveu graças ao whisky?

As duas responderam em coro. Era isso que ele sempre dizia. Você sabe, né? Ele nasceu prematuro...

Além do fato de eu não ter a mínima ideia de que meu avô, aquele homem enorme da minha infância, ter sido um bebê prematuro, não podia imaginar qualquer relação entre ele e a bebida escocesa. Foi ai que elas me contaram.

Meu avô nasceu em Liverpool, lá pelos idos de 1890. Isto mesmo. Finalzinho do século dezenove. Nasceu de sete meses. Meu bisavô era médico, então o bebê foi colocado em uma caixinha, tipo caixa de sapato, todo envolto em algodão. (Estou contando a história, como me passaram.) Envolto todinho em algodão e, além do leite materno, ele recebia em doses homeopáticas, a conta-gotas, uns golinhos de whisky!!!!!!!!! (Imagino que morno, que, dizem, é um santo remédio para qualquer mal!). E assim ele foi se criando, entre uma mamadinha e outra, uma gotinha de whisky para fortalecer.

Confesso que não tive coragem de perguntar se minha bisavó também tomava uns golinhos para incrementar o leite. Como a gente faz por aqui com canjica e Malzibier.

Elas continuaram. Foi isso... Daddy sempre contava. Era por isso que ele sempre tomava um whisky morno quando estava doente.

Não sei se foi pela surpresa ou se foi por que a sobremesa foi servida ou se é assim mesmo que a gente conversa, pulando de assunto em assunto sem muita perseverança, mas o fato é que,  de repente não estávamos mais falando nem de vovô, nem de whisky e nem de tratamentos para prematuros britânicos do fim do século XIX. Nada disso.

A conversa foi variando, variando... Assistimos à novela da tarde... Fofocamos sobre os artistas da TV... Criticamos nossos atletas... Queremos mais medalhas olímpicas!!!!

De vez em quando, ficávamos quietas. Um silêncio gostoso. Íntimo. Pedacinhos de assuntos se misturando... Meu joelho tá doendo... Fui ao teatro outro dia... Tem notícias de fulana?

E assim a tarde foi passando. Eu entre elas. Aconchegada. Como em um colo imenso e macio. Me sentindo tão bem. Tão segura. Como naquelas tardes de chuva, nós bem crianças vendo televisão, enquanto os adultos conversavam na copa. Ou, então, talvez, um aconchego morninho como o que o meu avô sentia lá deitado na caixinha, envolto em algodão! Sei lá... Tão bom...

Pra falar bem a verdade, só faltou uma coisa para a tarde ficar perfeita... Talvez uma dosezinha de whisky. Uma dosezinha só. (Aí, era o paraíso!). Mas, elas preferiram um chazinho...

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

2 comentários:

Eulalia disse...

Que gostoso ler esse pedacinho de conto aconchegado de whisky e algodão...
Mas, na leitura, juro que senti açucar, muito açucar pulverizando esse colo de tarde. :)

Celina disse...

Essas tias são mesmo um colo! Até eu peguei um pouquinho emprestado! Minhas primeiras palavras em inglês, apesar de mamãe ser proferrora, foram no curso de quintal de Tia Dorinha! Saudade daquele quintal!