sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A MOÇA DA PRAIA DE BOTAFOGO

 
Era de manhã cedo. Manhã de dia azul e limpo. Dia seco, mas ainda com aquele friozinho da madrugada. Barulho de rotina e amanhecer. Buzinas. Mães apressadas levando os filhos para a escola. Os ônibus derramando gente sonolenta a cada parada. Os primeiros executivos chegando para o trabalho com suas malas de rodinhas, ideias e celulares de última geração. Um varredor de rua. Uma freada brusca. Os vendedores de frutas. As donas de casa com seus carrinhos de compras. Mais buzinas... E eu, indo para a ginástica.
 
Foi de repente que a vi. Parecia invisível entre todo o burburinho. Veio vindo em minha direção. Ninguém reparava nela. Mais uma das muitas pessoas apressadas, começando o seu dia. Mas ela chorava. Vinha caminhando devagar e, talvez por isso, eu tenha percebido que chorava.
 
Não estava vestida para chorar. Era morena, queimada de sol e usava um vestido curto e estampado. Fundo branco com flores. Chorava. E não disfarçava seu choro. Não usava óculos escuros. Veio vindo em minha direção.
 
Chorava um choro silencioso, desses que só as mulheres sabem chorar. As lágrimas escorrem pelo rosto. E mancham a maquiagem. E deixam os olhos vermelhos. Um choro que dá quase para se disfarçar quando a gente mente e diz que é alergia... Mas chorava.
 
Foi então que nos cruzamos e eu pude ver que era um choro chorado já há algum tempo. Os olhos vermelhos e inchados. Um soluço. Passou por mim e se foi.
 
No tempo real, não mais que uma fração de segundo, mas, de repente, o tempo parou e me perdi na pergunta. Por que aquela mulher invisível e anônima, caminhando pela Praia de Botafogo, chorava? Era cedo demais para já ter sido demitida de um dos escritórios de um dos tantos Centros Empresariais. Era cedo demais para já ter saído de um dos muitos consultórios médicos com um veredito de doença incurável. Era cedo demais... Era o inicio do dia... E aquele choro tinha cara de final de noite...
 
Imaginei a cena... Ela e o seu homem discutindo por toda a madrugada em dos muitos conjugados da Praia. Ele a teria traído. Ela o pegou no flagra. Quem era aquela outra de perfume barato? Ele, um pouco bêbado, desconversa e disfarça uma mancha de batom na camisa. Ela grita. Ela o empurra. Ele esbraveja. Se joga na cama. Quer dormir. Não quer falar. Ela fuma um cigarro. Ele nega tudo. Ele a empurra. Uma quase bofetada se perde no ar... O dia vai amanhecendo por trás do Pão de Açúcar e ela fuma outro cigarro e jura vingança. Ele resmunga deitado na cama. Não quer falar. Não pode falar. Sono. A língua pastosa. Ela chora bem alto novamente. Xinga. Canalha! Canalha! Jura vingança. Vai trepar com o primeiro... Com um qualquer... Ele se levanta e procura uma cerveja na geladeira. Ela não o deixa dormir! Ela chora e grita e reclama novamente... Até a bofetada acertar... Seca. Com o rosto queimando, vê a manhã chegar entre barcos na Enseada de Botafogo. O homem finalmente dorme. Ela está exausta... Quer respirar... Precisa respirar. Pega o primeiro vestido que vê. O que está na cadeira. Um vestido estampado, com flores e fundo branco. Sai do apartamento e bate a porta com força. Está exausta... Chora um choro silencioso. As lágrimas escorrendo pelo rosto. Os olhos vermelhos ardem com a luz forte do sol. Caminha pela Praia de Botafogo. Um dia vai se vingar... E nem nota aquela mulher que passa por ela indo para a ginástica. Não consegue pensar.
 
Quando me dei conta, estava em frente à academia. Ela havia desaparecido no emaranhado do trânsito. Foi então que me lembrei que hoje, justo hoje, Nelson Rodrigues faria cem anos...
 
Sorri da ironia do acaso... E saí de cena antes da cortina cair.
 
(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

4 comentários:

Lúcia disse...

Pat, que delícia! Também fantasio qdo caminho pelas ruas e vejo as pessoas, cada um com sua história, cada uma com suas alegrias e tristezas. Excelente crônica. Estilão Nelson Rodrigues mesmo. Adorei! Que bom começo de sexta-feira!! Beijos

Eulalia disse...

Apesar da tristeza que envolve a emoção da cena, que nos comove (ou exatamente por isso), Nelson Rodrigues iria adorar.

Lindo texto!

Celina disse...

Só você para fazer uma cena de teatro Rodriguiniano em 2 microssegundos! Só vc!

Carla disse...

Que delícia de texto! Como diz Celina, só vc! Thanks!