sexta-feira, 3 de junho de 2011

O AVESSO DO AVESSO


Esta história de ser uma Local Vagabond não está mesmo dando certo. Vira e mexe e lá estou eu inventando algo para fazer. É bem verdade que o convite foi mesmo irrecusável. Assistir a um ciclo de palestras em São Paulo sobre o pensar criativo. Oito palestrantes, de diferentes áreas, de diferentes países, de diferentes tendências, pensando e falando sobre o pensar. Uma palestra a cada mês: Fronteiras do Pensamento.

Não resisti. Se o evento, por si só, já valia o meu engajamento, a possibilidade de ir todo mês a Sampa e ainda estar com queridos amigos de tempos venezuelanos (quem disse que Soraya não iria participar também das conferências?), fazia as coisas ainda mais atraentes.

Primeira palestra:

Voo tranquilo, encontro esperado com minha amiga, muito papo colocado em dia e um cafezinho delicioso. Decidimos ir cedo para a Sala São Paulo, sede da OSESP. Não queríamos ter surpresas com o trânsito. Soraya me jurou que sabia ir dirigindo e ainda tinha o GPS. E chegamos ao local sem problemas, com antecedência e loucas por outro cafezinho.

Em nosso tempo de espera até que as portas fossem abertas, continuamos conversando e observando a arquitetura do lugar, da região. Na noite friazinha, dava também para ver a Estação da Luz e eu intuia bem perto de mim a Pinacotheque e o Museu da Língua Portuguesa. Tudo cuidado, bonito.

Portas abertas ... Um olhar geral para entender onde estávamos. Empanadinhas e outro café. Gente interessante... Todo mundo com cara de Casa do Saber. Um encontro casual com outra gaúcha, mestranda de Filosofia.

Mezanino... Vista panorâmica. Uma abertura condizente com o local... Uma concertista nos brindou ao piano com uma peça de Rachmaninov e então,  escoltado por dois catedráticos de Literatura, entrou Fredric Jameson.

Sua palestra: A Estética da Singularidade.

Por mais de uma hora, nos falou sobre Globalização e Pós-Modernidade. Sobre derivativos, flash-mobs e estratégias de criação. Economia, Política e novas Tecnologias ... Falou da efemeridade da Arte, da morte da História, da diluição do sujeito e do tempo. E discorreu sobre o espaço e sobre o final das Utopias. Nada de passado nem futuro. Tudo único, singular, perdido no caos do momento. Superficialidades intencionais. Intenções superficializadas. O fim da Dialética. Tudo muito denso, muito intenso e muito cabeça.  

Depois das perguntas habituais, o evento acabou e seguimos para o carro. Era hora de voltar para o planeta nós. A cabeça tinha voado demais. Estacionamento iluminado, funcionários solicitos nos indicando a saída. E saimos.

O cenário tinha mudado drasticamente. Ruas muito escuras, vielas, ladeiras. (Afinal, era o centro de São Paulo.). Soraya, você sabe como voltar para casa?... Claro que sei e ainda tem o GPS... Seguimos. Acho que nos perdemos um pouquinho, refizemos o roteiro umas duas vezes... Recalculando... (Ainda bem que o carro é blindado! Caramba, como sou covarde!). E de repente, caimos em uma avenida larga e bem mais iluminada. O meu alívio se misturou a minha surpresa e a meu choque. Eu estava diante de outras Fronteiras... Nas ruelas transversais, a Cracolândia... No outro lado da janela, eu podia ver cobertores sem cor caminhando. Como um enxame  de vagalumes, cachimbinhos se acendiam e se apagavam. Fogo fátuo. Fato. Os párias dos párias diluindo-se em tempo e espaço. Singulares subjetividades perdidas na fronteira do nada. Sujeitos indeterminaos... Nem homens, nem mulheres, nem crianças... Os párias dos párias perdidos entre lixo e cruzamentos.

O sinal abriu... Seguimos... Ao longe, e não sei de onde vinha a canção, escutei Caetano recitando baixinho, como em uma nova Bossa Nova... pan-américas de áfricas utópicas/ mais possivel quilombo de zumbi / Avesso do avesso do avesso do avesso.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

6 comentários:

Elza Martins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elza Martins disse...

Texto tão intenso quanto o do palestrante. É muito difícil dar de cara com uma realidade que a gente não quer acreditar que existe, não é?

Celina disse...

É Ticha, eles existem mesmo! Os traficantes também. Meu Brasil Brasileiro...

Eulalia disse...

Caramba, você assistiu a uma conferência completa: teoria... e prática...
é...
adorei o texto

Alzira Willcox disse...

Chocante!
A Sala São Paulo e, ali quase em frente, o Museu da Língua Portuguesa são tão requintados que nos transportam para um mundo meio irreal, sofisticado, intelectual, fora da realidade da cidade e suas mazelas.
Imagino o seu choque ao sair de uma palestra sobre abstrações filosóficas e se deparar com a concretude da Cracolândia. E você escreve com tanta realidade que nos transporta para o horror em segundos. E nos sentimos vazios, desesperançados. O bom (?) é que passamos e logo enveredamos por "ruas" menos feias que não nos lembrem os horrores da vida.Podemos voltar à filosofia pura, fora do avesso do avesso.

Unknown disse...

Realmente, ver emcinza a realidade da Cracolândia foi um corte profundo no nosso debate sobre a palestra e na minha alma. Como mãe, é difícil ver tanta vida promissora perdida. Como um filho chega lá, como um pai ou mãe chegam lá, como um ser humano racional chega lá. Chega e fica. e sabe que se chegar, vai ficar. me senti como naqueles filmes da minha adolescência em que criavam o mundo do futuro pós destruição atômico exatamente como o que vimos naquela noite.
Qual será a aventura que nos espera este mês...