quinta-feira, 6 de maio de 2010

UM PECADILHO

Sim... Vou ter de confessar. De uns tempos para cá, ando tendo um enorme prazer em ouvir a conversa alheia.



A coisa começou por acaso, em Caracas, como um exercício de compreensão oral de espanhol, mas tenho que admitir... Virou vício. Talvez seja resultado das muitas viagens em que Silvio fica envolvido em seus multi-milionários projetos e a mim cabe a difícil tarefa de me, digamos assim, divertir. Já cai em tentação do Havaí a Houston, passando é claro pela Venezuela e Itália. Sempre uso como desculpa a questão de exercitar meus ouvidos em uma língua estrangeira, mas quando me pego em pleno Shopping Botafogo Praia xeretando papos alheios, aí tenho que admitir... pequei.



É bem verdade que, depois de uma árdua pesquisa, não encontrei listado entre os variados tipos de pecado a bisbilhotice. Mas sei... é coisa digna de alguns atos de contrição. Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa!







O casal já estava sentado na mesinha do canto quando cheguei para almoçar. No restaurante lotado, só me restava a outra micromesa ao lado dos dois. Fui me esgueirando entre cadeiras, mesas e mochilas até chegar ao meu lugar. E, como a garçonete demorasse a me atender, comecei a viajar o olhar pelas pessoas. Foi quando ouvi...



- ... não, o documentário está indo bem. É o pessoal da velha guarda que está fazendo e ...



Dava para ouvir alto e em bom som! Não resisti e embarquei na conversa do casal a minha esquerda. Ambos trabalhavam com cinema, ou publicidade, ou algo que exige roteiros e direção. Ela, baixinha, magrinha e com um vestido jeans. Idade indefinida. Ele, jovem. Alto e magro. De óculos e de barba. Falavam de trabalho... Mas, havia algo na conversa que me parecia estranho. Muitos silêncios. Pausas muito prolongadas. Todo o diálogo como um prólogo, uma longa introdução para a verdadeira peça.



A garçonete me olhou à distancia e pediu que um colega nos atendesse. A mim e ao casal.



A moça pediu uma salada básica e eu acompanhei o rapaz pedindo um espetinho de mignon com arroz integral e salada.



E, por fim, começou o ato 1, cena 1. Depois de uma série interminável de espirros, ele se desculpou e disse que não sabia mais o que fazer com a alergia. Contou que tinha feito uma inalação antes de sair de casa e foi aí que percebi uma exagerada preocupação da parte dela.



- ... você deve se cuidar... fazer inalação e sair ... tem o ar condicionado...



Ao que ele respondeu...



- Você deve ter estranhado o meu telefonema...



Sim! O enredo começava a ser desenvolvido! Ela falou algo, mas foi quando o garçom quis me explicar que estava trazendo o meu mate Leão natural diet com muito gelo e limão. (Tem coisa mais longa que esta explicação?) Está bem... está bem ...(disse), Mas o que foi que ela falou? (pensei).



Neste momento se fez um enorme silêncio entre os dois.



-... bem que falei para mamãe que tinha algo. Você ficou um tempão sem aparecer e depois me manda o email e me telefona para a gente se encontrar...



Oba! Eu tinha retomado o fio da meada.



- Pois é... Eu precisava te ver... te contar...



- O quê? Pode falar...



Ele se aproximou dela e cochichou algo em seu ouvido. Ah, não! Assim não vale!!!! E eu? E eu?!!! O que, afinal, ele pode ter segredado a ela?!!!???



- Eu acho que já sabia... Vocês dois estão vivendo juntos?



Epa!Fala ambígua! Vocês dois... Bem... a expressão serve tanto para companheira como para companheiro... Será que ele disse a ela que é gay e que está tendo um romance com um amigo em comum? Mas por mais franzino e delicado que ele fosse, não me parecia gay.



Cena 2.



- E sua mãe? Como reagiu?



O texto soava como uma confirmação. Ele deu de ombros. Tinha um olhar distante e triste. Deve ser isso (pensei), mas...



- Ela deve estar super feliz...



A voz da moça era agora um quase sussurro. Fosse o que fosse, o segredo a afetava diretamente. O silêncio agora foi muito longo e acho que só foi interrompido porque ele teve outro acesso de espirros. Quase uma convulsão.



Ela começou a falar novamente. Se o garçom chega agora eu furo a carótida dele com a faca de serrinha!!! (pensei).



Cena 3.



- Eu fui pego de surpresa... Foi tudo muito rápido... Não esperava por isso...



Intervalo.



O garçom chegou com a nossa comida e lentamente serviu nossos pratos, insistindo em se desculpar porque o purê de cenoura havia acabado.



Ato 2, cena 1.



- Você não acha que é muito cedo?...



- ...



- Sei lá...Você ainda tem tanta coisa para fazer...



Será que ele está com uma doença incurável? (pensei).



- Quando ela me falou...



O olhar dos dois se desencontrou e o dele quase bateu em cheio no meu. Disfarcei.



Cena 2.



Ele pediu outro suco de laranja. Ela, em silêncio, sorria um sorriso sem graça. O olhar dos dois se tocava e fugia, e se tocava novamente, e não conseguia fugir.



- Você acha que eu vou ser um bom pai?



- Você está feliz?



- Não sei... Nunca pensei em ser pai...



- Você quer menino ou menina?



- Não sei... Acho que menina...



- Dizem que menina dá mais trabalho.



- Você deu trabalho?



- Quando era criança não, mas na adolescência ...



E ela sorriu um sorriso de quem se lembra... E ele também sorriu... Cúmplice.



Cena 3.



Silêncio. E, de repente, ela começou a falar. Como um contraponto, uma quase resposta ao que ele havia lhe contado.



- Sabe a Célia? Ela também vai ter bebê. Meus pais vão ser padrinhos.



- Que bom. É para quando?



- Outubro...



- O meu também...



Epílogo.



Nós três já havíamos terminado de comer. Eu planejava pedir um cafezinho para prolongar o papo(!?!). Mas eles só pediram a conta. O garçom explicou que não tinha máquina para o Amex e eles se levantaram para passar o cartão na caixa.



Saíram e foram caminhando entre mesinhas e cadeiras. A esta hora, o restaurante já estava vazio.



Acompanhei seu caminhar até que sumiram escada rolante acima. Tristes e em silêncio, como uma cortina pesada de veludo vermelho que cai ao final do último ato.

Nota: Foto: San Miguel no Castelo San Angelo em Roma.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

4 comentários:

Olha...e se eu pudesse entrar na sua vida... disse...

hahahaha, excelente ! é impossível não ficar curioso assim, ainda mais nessas micro-mesinhas!

Alzira Willcox disse...

Se bisbilhotice é pecado, acho que hoje em dia todos pecamos. Mesas coladas em restaurantes, conversas em celulares. O advento do celular mudou a dinâmica de andar pelas ruas. Você vai colhendo retalhos de conversas; algumas de trabalho, sérias, receitas de comidinhas pra empregada, bronca nos filhos, fofoca...Tem de tudo. E a gente ouvindo sem querer. Eu me divirto fazendo "filminhos" quando não ouço a conversa até o fim.
Uma vez na Torna ouvimos um "costurar" político da pior espécie. Nem gostaríamos, eu e meu marido, de termos ouvido, mas fazer o quê?
Acho que estamos perdoadas. Coisas desse mundo das comunicações, instantâneas ou não.

Eulalia disse...

Caramba!
Sem retoques!
Adorei.

Celina disse...

Vai dar livro!!! acordando agora da volta de Dublin, vim bisbilhotar um pouco...A internet se encarregou de depecalizar... Muito bom!