sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ESQUINAS DE CARACAS


Tenho que admitir, o terremoto no Haiti mexeu comigo. Nestes últimos dias, as imagens e as noticias que chegam de lá têm me relembrado algo em que não gosto de pensar: a precariedade do ser humano. (Levei anos de análise para lidar com isso. Eu, leonina e levemente controladora.).



É claro que há milagres e o terremoto também mostrou que a gente tem a hora certa de ir, ou talvez, alguns tenham um desejo mais forte de ficar. Sei lá...


O fato é que, apesar de Caracas continuar bem agitada, com convocatórias de marchas e manifestações de ambos os lados para este 23 de janeiro, me sinto sem gás e sem assunto.


Foi então que pensei em escrever sobre um livro que li há algum tempo: Las Esquinas de Caracas.


Como já disse algumas vezes, a maioria das casas da cidade não tem numeração e, para encontrar um edifício é preciso saber o seu nome e perto de que marco histórico ou arquitetônico ele está. Acho que isso reflete uma verdade cultural, pelo menos da cidade (não sei se de todo o pais). Caracas é um lugar de nomes, palavras, muito mais que de números. Caracas é uma cidade em Word e não em Excel. Isso se reflete na atitude das pessoas. Fala-se muito, mas na hora de se fazer as coisas, botando tudo na ponta do lápis, sacando las cuentas (como dizem por aqui) aí eles ... começam a falar de novo.


Mas voltando às esquinas...


A cidade começou bem organizadinha, um quadrado dividido em calles e manzanas, isto é, em ruas e quarteirões (por muito tempo não entendi o que tinha a ver ruas com maçãs). Estamos falando dos idos de 1578. Com o crescer do lugar e com o passar dos tempos, havia que se determinar, imagino, pontos de encontro, por exemplo, e foi assim que as esquinas começaram a ganhar seus nomes. Não é como no Brasil, esquina da Rio Branco com a Sete de Setembro, não. A esquina tem seu próprio nome e o livro trata exatamente disso. Cada capítulo explica como foi dado o nome a cada esquina. Cada capítulo é uma deliciosa história de fantasmas, nobres, piratas, sovinas, freiras e padres, comerciantes, soldados, santos e mais santos e muita persignação.


A única esquina que conheço (passo por ela quando vou à Candelária de Metro) é La Pele el Ojo, isto é, a do Olho Vivo, no sentido de atenção, cuidado com o perigo. Não é a toa que ela fica em frente a uma outra que se chama El Peligro. “El Peligro fue esquina oscura y azaroza”, narra Don Santiago Key, mas um dia, surgiu na outra esquina um bodegueiro que dizia não temer a nada nem a ninguém. Quando decidiu abrir sua bodega, queria um nome chamativo que atraísse a clientela e, depois de muito pensar, pintou em letras gordas e negras a placa de seu estabelecimento: “Pele el ojo al Peligro”. O livro não esclarece se os assaltos melhoraram na região, mas informa que por volta de 1856 El Peligro era um lugar onde pastavam tranqüilamente algumas cabeças de gado. É, o lugar ficou bucólico e pastoril. Aí está, o poder da palavra!


Outra história que eu adoro é a da Esquina de Las Ánimas, ou esquina das almas. Preciso explicar o porquê? Imaginem uma Caracas do início da colônia, una ciudad oscura, donde apenas si en las casas principales, allá em la Plaza de Armas, existían algunas pequeñas luces alimentadas con sebo. E era neste cenário que se podia ouvir el grito del sereno: La una há dado...Tiempo nublado..., soava a frase do faroleiro. E, nesta cidade, também na região da Cadelária, havia uma esquina onde se podia ouvir el rosario de las ánimas, um cântico fúnebre, monótono, modulado por vozes que pareciam sair das entranhas da terra (!!!!!). Quem tentava enfrentar estas vozes nas altas horas da noite era punido com muito susto e pavor. É verdade que o próprio livro também informa que estas vozes do além poderiam ser vindas de gargantas mais humanas e ... mais profundas(?) Podiam ser o canto de pecadoras que saiam em procissão nas altas horas escuras, rezando suas orações para fazer penitência. Quem poderá saber a verdade? O fato é que o nome pegou e não me convidem para um passeio pela região depois do cair da tarde.


Há muitas outras esquinas e muitas outras histórias: a da Torre, das Monjas, dos Mercaderos, dos Jesuítas... A do Cristo al Revés, reafirma a nossa tradição de botar os santos de cabeça para baixo para conseguirmos algo deles. Por falar nisso, as moçoilas venezuelanas também põem Santo Antonio de ponta-cabeça quando querem achar um bom partido.


E, por falar em Cristo, há também La Esquina de El Cristo. Sua história começa em los tiempos em que los pobres y amedrentados habitantes de la vieja Santiago de León de Caracas no tenían paz nem nas ruas, nem em suas casas. Um tempo de histórias escalofriantes (adoro esta palavra). Nesses tempos, em uma esquina distante e isolada, apareceu um nicho com a imagem do Cristo. Ali eram feitas festas para celebrar a imagem e a cobriam de flores. Isto se fazia em memória a uma lenda que corria entre os vizinhos. Contavam que ali el diablo estuvo suelto por algún tiempo na figura de um bodegueiro a quem todos temiam. Era ladrão, era mau. Por muito tempo o bodegueiro fez suas ruindades, até que um dia um vizinho creyente y temeroso pediu ajuda a seu confessor. Foi o padre que o aconselhou a colocar um Cristo na esquina. E assim o fizeram, ele e os demais moradores. E conta a lenda que, depois daquele dia, el diablo dejó de atormentar a los vecinos.


Lendas, histórias, palavras. Mantras, rezas e orações. Talvez seja desse magma que sejamos feitos todos nós, pobres mortais. Por mais que saquemos nuestras cuentas, por mais que queiramos ser precisos como uma planilha em Excel, somos frágeis e precários como uma lenda qualquer. Somos feitos de carne, ossos e palavras... Nossas histórias.


No Haiti, a igreja onde estava a Dra. Zilda Arns caiu por inteiro soterrando vidas, sonhos, palavras... Só ficou de pé a imagem de um Cristo. Como uma lenda.


Enquanto o mundo se mobiliza em ajuda, a imagem observa em seu altar de escombros.


Que este Cristo possível abençoe às almas e aos homens, precárias lendas, palavras perdidas nesses desvãos e esquinas a que chamamos vida.






(Informações in Las Esquinas de Caracas de Carmen Clemente Travieso, Los Libros de El Nacional)

in pblower-vistadelvila.blogspot.com

Um comentário:

Eulalia disse...

Ruas sem nome, esquinas com nome...
Vivi essa aventura, graças a você, querida, que me apresentou Caracas, entre as "colas" e o sonho.
Adorei o texto. É a cara de Caracas mesmo... mas é, antes, de tudo, sua visão de alma dessa cultura tão interessante.