quinta-feira, 12 de novembro de 2009

SIMPLICIO (OU A ESTRELA PERFEITA)



Claudia combinou de nos apanhar de manhã para irmos conhecer a feirinha de artesanato que é montada aos sábados perto do Teatro Teresa Carreño. A idéia, mais que ver e comprar as artezanías, era conhecer as barraquinhas de buhoneros (camelôs) que vendem DVDs de filmes venezuelanos.

A Venezuela é um país caribenho e, portanto, afeito à pirataria. Em Caracas, pode-se comprar qualquer filme, digamos assim ... genérico, do o mais cult ao mais comercial, em lojas especializadas, a preços bem módicos e com direito a recibo. Filmes estrangeiros, é verdade, pois há uma espécie de acordo de cavalheiros que filme venezuelano deve ser preservado. Mas na feirinha do Teresa Carreño se encontra de tudo da produção local.

O grupo não era pequeno, pois Soraya mais Bragança e seus pais e o irmão se juntaram a nós. Deixamos o carro em Sabana Grande, tomamos o metro e duas estações depois já estávamos entre artesãos, pulseirinhas, discos de vinil de segunda mão, muitos CDs, incenso e as barracas dos DVDs. Claudia ia mostrando os clássicos criollos e nós íamos montando nosso acervo particular: comédias, dramas, policias, filmes históricos e documentários. O vendedor, conhecedor do cinema venezuelano, estava em êxtase diante de duas brasileiras que pediam sugestões e iam separando os filmes. Ao todo foram quatorze películas. Uma féria inesperada para o nosso camelô. Como bons venezuelanos, mais gente foi se juntando a nós, opinando, sugerindo. A barraca virou uma festa.

E, de noite, nos preparamos, Silvio e eu, para a nossa sessão de cinema, com direito a pipoca e tudo. Foi ele quem sugeriu que víssemos Simplicio, pois disse que estava com saudades do mar (Silvio tem dessas coisas... saudades do mar!?!) e como o filme se passa na Isla Margarita...

O filme, de 1978, foi dirigido por Franco Rubartelli. Recebeu um prêmio se não me engano em Cannes e seus atores não eram profissionais, era gente da ilha. Conta a história de Simplicio, um menino que foi abandonado pelos pais (um bandido e uma prostituta) e que passa a ser criado por um velho pescador.

A cópia não era lá essas coisas e o sotaque margaritenho dos atores só piorava a qualidade do som, mas com todas as dificuldades, Simplicio foi tomando conta da gente. O menino e o pescador, a morte do pescador, a decisão de ficar morando no barco pesqueiro abandonado, o novo amigo (uma gaivota ferida), a preocupação do padre com o menino sozinho, as discussões do menino com o padre e o sacristão, sua necessidade visceral de liberdade, as brigas com os outros meninos, os encontros com o fantasma do amigo, suas falas... seus silêncios. O fim eu não conto. Inesperado.

Mas o que mais me encantou foi a amizade incondicional entre o menino e o velho. Inicio e fim de vidas. História escrita e página em branco. Uma amizade de dois seres humanos que se contemplam e se completam em pura cumplicidade.

Me lembrei de vovô Claudio e eu (com uns cinco anos) comendo churrasquinho passado na farinha e tomando Mineirinho depois que ele me buscava na escola. Não conta nada pra sua mãe que a gente tá comendo isso, senão ela briga comigo. E eu solidária: Pode deixar, não conto nada... Vovô, conta de novo a história de quando um tubarão te raptou. O clímax dessa história, que ele me contava quase todas as tardes, era quando ele tinha de trabalhar na casa do tubarão varrendo a sala e as correntes marinhas empurravam o lixo de volta para dentro da casa. Um sofrimento. E eu, de olhos marejados, sempre buscava uma maneira de ele se livrar do suplício.

O menino e o pescador. Simplesmente... Simplicio.

A cena que agrego ao texto se passa no inicio do filme e é quando vamos entendendo o quão ligados eram os dois. Certamente o som é inaudível e, portanto, faço aqui uma transcrição de pé quebrado.

Simplicio se irrita e não entende porque os outros meninos implicam tanto. O velho lhe diz que é porque o menino anda sempre com ele. Os outros, na verdade, querem mesmo é agredi-lo (Por ser velho? Por ser podre? Por não ser como os demais?): No hagas caso...E eles, então, dançam, e nadam, e brincam e medem forças. Observam pelicanos.
O menino, ao sair do mar, diz que queria poder voar para visitar muitas estrelas. E o pescador lhe segreda, até encontrar a estrela perfeita. O menino lhe pergunta como é essa estrela e ele conta que é um lugar onde todos se queiram bem. E o menino acrescenta: como nós dois. O pescador fecha a cena com um sussurro de fala: Sin ninguna duda nuestra amistad es la estrella perfecta.

Amistad...

Penso agora em amigos com quem compartilho estrelas perfeitas. Distantes ou próximos, não importa. São esses amigos que me enchem de luz, que me fazem pensar que vale a pena seguir, que me presenteiam com um bem querer que é feito de mar. Queridos amigos em estrelas perfeitas, onde a qualquer hora se pode chegar.

Amistad...

E neste vôo de acasos, a que chamamos vida, são eles meu mapa, minha bússola e meu compasso. São eles que me indicam no espaço vazio, a rota e o rumo no caminho do Sol.

(in pblower-vistadelvila)

4 comentários:

Anônimo disse...

Amiga querida,
gosto das palavras do sábio Rei Salomão. Estou sempre dizendo isto para as pessoas quando me refiro a vocês - as AMIGAS:
"Há amigo mais chegado do que um irmão" - Provérbios 18.24

Seu texto como tudo o que você escreve chega lá no fundo e se aninha no coração.
Obrigada por você ser quem é.
Sem sua licença trasncrevi parte dele no Orkut. Sò por uns dias!
beijos carinhosos

Alzira Willcox disse...

Amigos são como estrelas...Bonito isso! Bonito final. Sempre muito bom ler o que vc escreve que, como diz Marília," chega lá no fundo e se aninha no coração". Tocante.

monica disse...

Ai, que lindo! E necessário.
Bj,
Mônica

Eulalia disse...

Com certeza, esse blog deveria virar livro...