sexta-feira, 23 de outubro de 2009

NOVAS ANTIGAS EXPERIÊNCIAS



Não tive muitos ônibus em minha vida, mas os que existiram foram inesquecíveis.



Me explico. Não sei se é assim com todo mundo, mas para mim, houve alguns ônibus (os seus trajetos, seus horários, as pessoas que usualmente encontrava neles) que me marcaram para sempre.


Não vou nem falar das recordações mais remotas da infância. A voz de papai dizendo: Vou pegar a amarelinha. Ou quando saía com mamãe e a gente comprava as fichas da lotação e depois as deixava cair em um vidro acestavado e fazia um barulho surdo ... Plom, plom, plom. As fichas tinham cores diferentes e como eu as desejava em silêncio. Eu costumava brincar de cobradora de ônibus com vovô Claudio e seria um sucesso ter as fichas para usar na brincadeira. Eu e as minhas idéias me menina.


Mas o primeiro ônibus em minha vida foi o 49. Um circular que nem sei se ainda existe em Niterói. Circulava de tal forma que quando se entrava no ônibus sempre se encontrava alguém conhecido. Como estava sempre cheio, ia todo mundo apertado, se esbarrando e os motoristas ainda davam umas freadinhas que empurravam as pessoas mais para frente, o que eles chamavam de freio de arrumação e aí dava para entrar mais gente. Pois foi o 49 o representante de um dos ritos de passagem em minha vida. Um dia mamãe me deu o dinheiro da merenda e o da passagem também e disse: Já tá na hora de você ir sozinha pra escola. Ali começou minha adolescência. (As coisas eram bem mais simples naquele tempo. Eu nem sabia, na época, que eu era uma pré-adolescente com grandes variações hormonais e com potencial de sofrer problemas existências que poderiam afetar minha psique para o resto da vida). Nada disso. Me senti uma adulta(!!), pegando o 49 sozinha.


Depois foram o 119 e o 154. Era meu primeiro ano de faculdade. Eu tomava a barca, fazia a travessia Niterói/Rio, aproveitava para estudar no percurso, pegava um dos ônibus para chegar à praia de Botafogo e, finalmente, chegar à universidade. Eu gostava mais do 154, era mais vazio. São inesquecíveis as manhãs de outono, quando passávamos pelo Aterro e uma névoa baixa, um resquício da noite, insistia em permanecer na paisagem. Era o ônibus correndo e a minha cabeça a mil... planos para futuras aulas, viagens desejadas, muitos poemas ... Todas as possibilidades da vida se abriam para mim naquelas manhãs.

No ano seguinte, decidi ir para a faculdade de 996. Não tomava mais a barca, atravessava a ponte, que, naquela época, eu achava engarrafada. (Que inocentes podem ser os jovens! Nos muitos anos que se seguiram enfrentei na ponte engarrafamentos antológicos). O 996 demorava e ainda demora tanto tempo para chegar a qualquer destino que se pode tomar decisões das mais profundas em seu percurso. Uma pessoa pode criar estratégias consistentes para mudar toda a sua vida entre a Praia de Icaraí e a Gávea. E foi no 996 que comecei a planejar minha primeira viagem à Europa e também fui visitada por inúmeros poemas inéditos. A cabeça ia encostada na janela, vento no rosto e as palavras fervilhando no cérebro.


Mas, no outro ano, comecei a ir para a faculdade de carro e me transformei no que sou ainda hoje, uma motorista compulsiva, um ente moderno feito de cabeça, tronco e rodas.


Tenho uma amiga que diz que tem dificuldades de andar de ônibus porque perdeu o timing entre tocar a campainha e sair no ponto desejado. Tenho o mesmo problema. Quanto tempo antes se deve avisar ao motorista que se quer saltar? Quando o ônibus está cheio então é um horror!



Passei muitos anos sem pisar em um ônibus e, portanto, quando cheguei a Caracas, nem cogitei de usar transporte público. Mesmo no tempo que fiquei sem carro por aqui, preferia contar com os táxis, que também são problemáticos, mas, pelo menos, eram meios mais conhecidos para mim.


O transporte público aqui deixa a desejar. Há o Metro (se diz métro) que é muito bom, moderno, mas que só atinge uma parte da cidade e está sempre, como eles dizem... full. Táxi não tem taxímetro e pode ser moderno e confortável ou absolutamente bandalha, em todos os sentidos. Há o Metrobus, excelente, mas que não chega onde moro. E, há os ônibus normais, menores e às vezes bem velhos: as camioneticas ou melhor dizendo ... las busetas. Tenho problemas para usá-las por muitas razões, mas acho que a principal é lingüística. Em bom espanhol, pegar um ônibus é tomar, ou pior, agarrar una buseta!!!!! Por mais cabeça aberta que eu seja, tenho dificuldades para perguntar as pessoas: Por favor, ?Donde se agarra la buseta para Bello Monte? Difícil, né?


Mas, naquele dia, Claudia, nossa professora, nos queria mostrar a cidade por outro ângulo. Sugeriu que fôssemos à Quinta Anaudo Arriba, a casa mais antiga de Caracas (1632) e que fica em San Bernardino, um bairro tradicional da cidade. Iríamos de carro até Sabana Grande, tomaríamos o Metro para o centro, tomaríamos um Metrobus até o Hotel Ávila, almoçaríamos no hotel e, depois, tomaríamos una camionetica (Claudia nunca diz buseta) até à Quinta.

No Metro, apesar de totalmente full, deu para eu matar saudades de Londres. O barulho do trem nos trilhos (caplac, caplac, caplac), o escuro e as luzes. Só não tinha o mind the gap. Eles não falam nada aqui. Cada um que cuide de si. No Metrobus, passando pelo centro, Ana e eu optamos por ficar em pé, perto do motorista, para ver todo o movimento da cidade. Chegamos ao hotel e o lugar era uma delícia. Um parque bem aos pés do Ávila. Almoçamos super bem e aí chegou a hora fatídica: !La hora de la buseta! Fiz de tudo para Claudia desistir. Propus pagar táxis para todas, mas ninguém me dava apoio e lá fomos nós para o ponto. Logo chegou uma camionetica que não era tão velha e não estava tão cheia. Não havia muita gente esperando na parada e, quando entramos, as amigas fizeram questão de me fotografar. Achei exótico o motorista estar acompanhado do Piu-Piu, mas mascotas são mascotas, não dá para questionar.


O trajeto foi rápido e, confesso, bastante interessante. A senhora sentada a meu lado, como boa venezuelana, imediatamente começou a conversar comigo. Me explicava onde estávamos e dizia das vantagens daquela buseta. Atendia a toda a região e era bastante barata.


Uns dois ou três pontos depois chegamos à Quinta e, depois da visita, regressamos ao ponto para o percurso de volta. A espera foi mais longa desta vez, mas valeu, pois a buseta que pegamos era super incrementada. Toda pintadinha de verde, com cortinas nas janelas, uma imagem de La Virgen de Coromoto e uma frase gravada junto ao vidro: En honor de mi hijo. Perguntamos a Claudia, mas nem ela sabia dizer se era uma homenagem póstuma ou uma celebração pelo nascimento do filho. Não importava. Ela também nos explicou que aquela buseta podia fazer transporte para outras cidades, pois tinha cortinas nas janelas, o que indicava que tinha autorização para tal.


E lá fomos nós, descendo e subindo ladeiras. As amigas fotografando, conversando, rindo, mexendo comigo. Mas, como o percurso era mais longo, foi todo mundo se calando e, de repente, me vi em uma cena antiga... a cabeça encostada no vidro, o vento no rosto, não havia mais planos de aula, nem mesmo o desejo de viagens, só meu olhar correndo a cidade, visitando o entardecer... E, aí, as palavras começaram a fervilhar...

(in pblower-vistadelvila)

4 comentários:

monica disse...

O 49 continua firme e forte fazendo o trajeto de sempre (??!).
E viva la buseta/camionetica!
Bjs,
Mônica

Celina disse...

Você sabe que eu voltei linda aos bancos dos ônibus depois que me livrei do carro... adoro! Se engarrafa, música no cérebro e o motorista que se vire. Forty nine, ainda catapulta a gente. Minha paixão ainda é o 453 to Marylebone! Una buseta articulada, hhehehe!

Eulalia disse...

Viu? O 49 ainda existe! E... também... o mesmo rosto colado à janela. Bom reviver o mesmo gesto tantos anos depois. Nos leva à essência.
Sob o meu ponto de vista, a essência linda que é você!

Elza Martins disse...

Pat querida, me lembrei de vários acontecimentos relativos a transporte público. Me lembro de Marília nos contanto que o espírito do metrô de Londres havia chegado a Niterói, o "mind the gap" havia sido convertido em "levantando o pezinho para não tropeçar!!!! que o moço da barca diz todo dia alertando os distraídos. Adorei seu texto, me fez lembrar da infância e das conquistas que obtínhamos, então. Ah, em tempo, adorei o Piu Piu.