sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

PACHECO E AS GUACHARACAS





Não, não se trata de um novo conjunto de Rock alternativo de Porto Alegre ou de Brasília, nem tão pouco de uma pornochanchada dos anos 70, produzida pela Embrafilme. Não. Tanto o Pacheco quanto as guacharacas são entidades absolutamente caraquenhas.

Para começar, o Pacheco não é uma pessoa, mas já foi. E as guacharacas... Bem, as guacharacas são guacharacas.

Quando eu ainda estava no Rio e Silvio já estava vivendo aqui na Venezuela, nós nos falávamos todos os dias por telefone. Aliás, esta prática vinha de muitos anos por morarmos em cidades diferentes, eu no Rio e ele em Salvador e depois em São Paulo.
Para quem já passou pela experiência, deve lembrar que é sempre a mesma conversa telefônica: E aí, tudo bem? Tudo bem. Como foi seu dia hoje? Ah, super puxado! Quê que você comeu hoje no almoço? Bla, bla, bla ....
É bem verdade que já vimos capítulos inteiros de novelas juntos, eu no Rio e ele na Bahia. A conversa era marcada por longos silêncios enquanto a trama se desenrolava. Mas, ironias à parte, até que também dá para namorar bastante via Embratel.

Bem, mas voltando as guacharacas... Quando eu ainda estava no Rio e Silvio já em Caracas, falávamos todos os dias por telefone e ele me dizia que era sempre acordado por marrecos, depois mudou para patos e chegou um dia que considerou a possibilidade de haver um bando de arapongas sobrevoando nosso apartamento.
Quando cheguei, confirmei que eram aves pontuais, bastante barulhentas e que tinham um prazer mórbido de sobrevoar nossa casa por volta das 6:30 da manhã. Comentando com Claudia, minha professora e especialista em assuntos aleatórios, ela não titubeou: Son las guacharacas. Esas aves despertan Caracas todos los días. Dado cultural e auditivo registrado. O que é mais estranho é que você é capaz de ouvi-las com perfeição, mas chegar a ver uma é obra do destino.
A primeira vez que me deparei com um espécime, experimentei um misto de sucesso e frustração. Uma guacharaca é uma galinha d’ângola voadora. Um bicho sem graça e desajeitado, mas com pulmões de fazer inveja a qualquer Maria Callas.
Silvio tem uma teoria de que nos finais de semana elas dão uma tregua e só chegam depois das 7 horas da manhã. Tendo a concordar com ele. Acho que toda guacharaca encara uma noitada às 6as feiras e aos sábados. Não sei se vão às discotecas dançar salsa e raggatone ou se passam as noites no bingo. O fato é que perdem a hora nos finais de semana, mas na 2ª feira, estão inteiras ... berrando ao amanhecer.
O que a principio era algo estranho e bastante irritante, foi, com o tempo, se tornando parte de nossa rotina e tenho que confessar que quando, por alguma razão, não ouvimos seu canto pela manhã, fica um certo vazio no ar por todo o dia, só preenchido, diga-se de passagem, ao final da tarde, quando elas novamente entoam sua serenata antes de irem dormir.



Não há uma estação especial para o show diário destas aves, já com o Pacheco a coisa é diferente.

A primeira vez que ouvi falar no Pacheco, foi em um almoço em que uma venezuelana, ao reclamar do frio, comentou: Este ano, o Pacheco está demorando a ir embora!
A declaração aguçou minha curiosidade. Pacheco? Que Pacheco? Ela sorriu e me contou a história.

Conta a lenda que, há muito tempo atrás, havia um agricultor chamado Pacheco que morava em Galipán, um pueblito que fica bem no alto do Ávila. Ele cultivava flores e, com freqüência, descia até a cidade trazendo sua produção no lombo de burricos.
Pacheco não gostava de Caracas e muito menos de La Guaira (região à beira mar, onde fica o porto), pois detestava o calor. E assim, só descia de Galipán quando, na montanha, fazia mais frio, o que indicava que abaixo a temperatura era mais aprazível. Pacheco adentrava a cidade pela porta de Caracas no bairro de La Pastora, onde ainda hoje está o Mercado de las Flores de San José. Era ali que fazia os seus negócios.
Pacheco subia e descia com seus burricos cobertos de flores três vezes por semana, até quase o final de janeiro quando regressava a Galipán e só voltava a Caracas quando a temperatura baixava, isto lá pelo inicio de novembro.
Desta forma, os caraquenhos começaram a associar a chegada do Pacheco, com sua produção de flores, à época mais fria, que vai de novembro a janeiro.
Um dia alguém notou que naquele ano o Pacheco não havia chegado, e ele nunca mais voltou, mas sua marca já estava gravada na cidade.
Até hoje, no inicio de novembro o povo começa a dizer: ya se siente el Pacheco, llego el Pacheco. E assim vai se passando o que eu chamaria de inverno por aqui, mas que eles chamam de época de seca. Às vezes reclamam: !Pacheco está fuerte este año! Ou como a venezuelana observou: Este año, Pacheco todavia no se fue.


Passei anos de minha vida, acordando sozinha e ligando para Silvio para lhe desejar um bom dia. Hoje, posso garantir, que acordar junto a ele, nestas manhãs de friozinho e começarmos o dia ao som de muitas guacharacas é um prazer simples e delicado.
A gente acorda bem cedo e vai até a varanda para ver como está o Ávila. Quando o Pacheco está por aqui, não abrimos as portas e vemos o amanhecer por trás das vidraças.
Hoje, pela primeira vez em muito tempo, ousamos sair.

Pienso que Pacheco ya se fue... Que faça uma boa viagem até Galipán, meu amigo. Nos vemos no próximo novembro. Traga seus burricos cobertos de flores. Flores mágicas, feitas de brisa e encantamento.

Nota: Fiz de tudo, mas as guacharacas se negaram a particpar do filme.

Nota 2: Soraya conseguiu registrar o canto lírico das guacharacas. Para checar, é só visitar o blog Caracas feliz.

(in à vista de ávila)

2 comentários:

Unknown disse...

Patricia,

as guacharacas ñ foram atuar no teu filme pois já estavam contratadas por mim para aparecerem no filme de Caracas Feliz. Se desejam ver a foto delas e ouvir seu canto, basta clicar em Caracas Feliz. Tenho certeza que todos irão concordar que como despertador elas são muito efecientes.

Beijos

Elza Martins disse...

Querida Pat:

Que delícia ler seu texto. A gente viaja junto;vê e ouve os pássaros e consegue, até, imaginar o casal olhando o Ávila, seja fora na varanda ou protegido pelo vidro.
É de fato um dom poder colocar em palavras os diversos momentos especiais que vivemos e compartilhá-los com os amigos. Amigos que embora menos dotados nas palavras são também muito sensíveis.
Tenham uma excelente semana e até terça. Bjs.