sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

UM POUQUINHO DE MIM (para Cida e Eulália)


Não sei se foi o Natal ou se é este inicio de ano em terras caraquenhas, com uma temperatura quase inverno e dias bem limpos e claros como os de outono no Rio. Dias de luz branca que Ricardo adora e que me ensinou a curtir há muito tempo. Não sei se foi estar longe de tios e primos e de amigos queridos desde outubro passado, mas a verdade é que tenho andado com saudades. Pode ser também por causa dos emails cada vez mais filosóficos que Cida e eu temos trocado ou resultado da leitura dos textos de Eulália que me remetem a tempos há muito idos. Não sei o que foi. Ou será que foi tudo isso junto? O fato é que tenho lembrado das pessoas, revivido experiências, me reencontrado com momentos felizes e tristes que fizeram a história de mim.
Logo que comecei a fazer análise, há muito tempo atrás, dizia para minha analista que ninguém muda. Pode ampliar seu escopo de compreensão das coisas, seus insights, sua capacidade de ver e sentir, mas mudar, mudar mesmo, ninguém muda. E agora, enquanto reviro minhas gavetas reais e abstratas, me descubro assustadoramente camaleoa. Quantas peles e escamas ficaram ao longo deste caminho chamado tempo!
Nunca fiz diários, mas como andei escrevendo pela vida, os textos ficam como instantâneos (fotos Kirlian?) do que fui, senti e vivi.
O poema que segue é inédito. Tão inédito que nem Cida, a maior especialista em minha obra (!), o conhece. Acho que já o li uma vez para Eulália quando ela me visitou na Bahia, mas foi só uma vez e nem sei se o li mesmo.
Eu escrevi este texto poucos meses depois de meus pais terem falecido. Eu morava sozinha numa casa de dois andares em Niterói. Sozinha, não. Era eu e Menina, minha cadelinha. Eu ainda não conhecia Silvio (iria conhecê-lo dois meses depois) e era como se tudo estivesse começando de novo.
Há uma coisa mágica na releitura do texto. Ele pode ser dividido em duas partes, uma mais acinzentada e outra em cores primitivas e fortes. Uma referente a São Paulo e outra referente à Bahia. Menciono outros lugares, mas as cidades-âncora no texto são Sampa e Salvador. As duas cidades onde, coincidentemente, tempos depois, vim a viver com Silvio antes de virmos para Caracas. Premunição?
Quanto às duas personagens do texto: Menina já não existe mais e eu ... eu continuo gostando de São Paulo e da Bahia, mas muita água já passou por baixo de minha ponte, o que fez com que minhas pedras perdessem as arestas, ficassem mais roliças. Me nego, no entanto, a mudar o titulo do poema, ele é sem dúvida, um pouquinho de mim.


PATRICIA
(maio de 1996)

gosto de São Paulo
e das pessoas de São Paulo
e dos viadutos
e de tomar sorvete no Ibirapuera
(parque casa chão de todos os rostos)
gosto do cinza São Paulo de São Paulo
(tráfego tráfico marginais)
gosto de tomar café em Higienópolis
depois de jantar no Castelões
gosto de ler jornais em praças
gosto de São Paulo e de seus jacarandás

prefiro os dias de chuva
porque cinza
porque silêncio
porque agora
não há euforia nos dias de chuva

moro numa casa casa
com portas e janelas que dão para um
jardim quintal
moro eu e menina
(minha cadela)
fêmeas de diferentes raças
tão frágeis e furiosas
vendavais
ambas soltamos pelos
olhos castanhos
de cor igual
ambas cavamos ninhos
para invisíveis ninhadas

nos fazemos agonia e companhia
brigamos ambas
arranhamos ambas
ela late eu grito
marcamos nosso território
ambas gostamos do sofá

gosto de ouvir jazz nos dias de chuva
anônimo jazz
(nunca sei quem está no CD)

sou uma leonina sem ninhada
que nos dias de chuva
aprecia estar só

cada vez mais gosto do frio
de neve
de um cinza céu cinza
casaco pesado
lábio por rachar

o aconchego está nas palavras
(a poesia minha eterna companheira)
minha palavra
minha fala no espelho

gosto de contar estórias
para quem quiser escutar

gosto cada vez mais das manhãs de maio
(continuo um caso raro de outono tropical)
folhas amarelecem dentro de mim

saudades da Bahia
saudades de mim na Bahia
olhar enviesado para esta espécie de Nápoles
(franja de Salvador)

saudades do mormaço/aconchego
das manhãs de chuva de Salvador
saudades de todas as minhas certezas
de meus sonhos de menina tão menina
menina
menininha

castelos de areia em Arembepe
farol de Itapuã
meus medos em Conceição da Praia
eu em Mont Serrat
(Senhor do Bonfim olhai por mim
me traz luz
me traz)

quem é esta Patricia tão saudade
quem é esta Patricia tão Nazaré das Farinhas
(intermezzo-
um quase chegar)

saudades de mim e de meus medos
tão tolos medos em noites de Escócia
(castelos no ar)

me acordo
me visto
me dou colo
me arrumo pra vida
e vivo
o que há de vida na vida que me cabe

que saudades de uma Patricia
menina/boneca/Lisboa

bebo um whisky
arrumo a casa
lavo a roupa da semana
e divido o sofá com menina
(minha cadela)
ela e eu sobreviventes
dos dias de céu azul

Nota: A foto é do mar de Mochima, Caribe venezuelano. Nem acinzentados, nem cores fortes, apenas transparência.

(in à vista del ávila)

7 comentários:

Fábio Rockenbach disse...

Patricia
Quanto ao banner, alguma daquelas fotos que a gente viu seria um belo background para ele, se topares?
Gostei da idéia de falar da produção cultural na Venezuela. Eu, particularmente, não conheço nada.
Vou agilizar a inclusão tão logo a gente lance a revista online.
Beijos meus e da Carla

Elza Martins disse...

Pat, querida, chegou mais um domingo no Rio. Um domingo que prometia ser muito bom, igual aos outros. Um dia de descanso, de falar com os amigos e com a família. De ler jornal devargarzinho, de sorver café com calma e de fica acarinhando meu cachorro no sofá.
No entanto, fui presenteada duplamente hoje pela manhã, recebi um lindíssimo e-mail da Cida, que a trouxe para perto de mim,incluindo seu sorriso, seu carinho, tudo ficou pertinho. O dia se iluminou, apesar de algumas nuvens no céu.
Depois, entrei no seu blog e fui, novamente, presenteada por esse incrível poema,que você diz antigo e que tem um pouco da vida de cada um de nós. Que benção é ter amigas como você e a Cida para confirmar que a vida é mesmo incrível e que VALE A PENA!!!

Lúcia disse...

Patrícia

Esse poema me emocionou, fiquei com lágrimas nos olhos. Talvez pelo tema da saudade. Saudades de mim. Talvez pelo meu pai, que também já faleceu. Talvez pelo meu processo de análise, também já longo, pelas mudanças que passei.
Uma coisa eu tenho certeza, foi pela beleza das suas palavras e pela sua inspiração.
Grande abraço,
Lúcia

ps: o link para seu blog também já está na nossa lista de favoritos, viu?

Alzira Willcox disse...

Hoje estou sensível e chorona, meio perdida em minha história. Ler o seu texto prosa-poesia (com hífen, rs?) e belíssima poesia-poesia, me abriu as comportas do coração. Ainda mais referindo-se a Cida e sua rara sensibilidade. Chorar também é bom de vez em quando.Fiquei mais leve talvez.Adorei!
Bj

VERA disse...

Pat,adoro ler o que escreves;é tão real e ao mesmo tempo mágico.
Este teu verso arrazou o coração daqueles que andam saudosos...
Não deixei de ler nenhuma vêz,só que no Rio,lambendo as crias quase não tinha tempo;mas ler eu lia.
Este teu blog é como um livro de cronicas,mas feito por um autor,fantástico!!!!!
Mil beijocas
Vera

Celina disse...

Primoca querida,

Só hoje, back to London, tive tempo de me atualizar um pouco e cai de boca no A vista del Ávila.
Tenho vivido dias incríveis e um sorriso enorme grudou na minha boca desde que cheguei a Londres e passamos momentos inenarráveis em Bruges e Paris. Pois foi com esse sorriso que chorei copisamente ao ler seu poema, a falar das saudades,de Menina querida, nascida nas minhas mãos...Te amo!

Eulalia disse...

Sim, querida, me lembro muito do poema. Me lembro de nós três juntas em sua sala, você enrodilhada com Menina, no sofá, lendo para mim.

Senhor do Bonfim olhai por mim, me traz luz me traz

Trouxe! (sorriso)
beijinhos
saudades