domingo, 25 de janeiro de 2009

DE PIRÂMIDES E DE MONTANHAS


A foto acima é do Pico Bolívar, cidade de Mérida, ponto mais alto dos Andes venezuelanos, com 5007 metros de altitude. Na Venezuela, a cordilheira dos Andes fecha seu ciclo. Já não há tanta neve como em outros países. Os picos já não são tão altos. Na Venezuela, a cordilheira cumpre seu trajeto e não ousa chegar ao mar.



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Em 2002, estive na cidade do México com um grupo da Cultura. Estávamos participando de um congresso e, entre palestras, contatos de negócios, visitas a expositores, tivemos tempo para visitar a região, inclusive os sítios arqueológicos: as pirâmides de Teotiohuacan.
A altura da cidade já me tinha pegado. Eu sentia como que uma tontura constante que eu preferia pensar que era mais pelo excesso de tequila do que resultado de minha hipertensão.
Eu estava deslumbrada com a cidade: as pessoas, a música, os murais, a comida, o Museu (!!). Tudo me encantava, mas o que eu queria mesmo ver eram as pirâmides. O que eu desejava muito era chegar ao topo da Pirâmide do Sol. Coisas de leonina. Mas... entre o desejo e o ato pairava um medo enorme. Medo do esforço de subir. Medo de ter um piripaque. Eu, imolada em plena pirâmide por minha pressão alta.
Quando chegamos ao parque, admiti o meu pavor. Ficaria vendo as lojinhas. Daria uma volta pelo lugar. Ia esperar pelo grupo na base das pirâmides.
O pessoal, então, partiu para a subida, todos aerobicamente preparados. Todos, menos uma pessoa. Regina também ficou para trás. Eu não tinha a menor intimidade com ela. Esposa de meu chefe naquela época. Simpática, atenciosa. Mas intimidade, nem pensar. Ela me disse que também sofria de hipertensão e me convidou: “Vamos subir. Vamos devagar. A gente vai parando. Eu acho que dá pra chegar”. Entre meu desejo e meu medo, pairava agora um convite, um apoio. Motivação. E assim, fomos subindo. Aos poucos. Bem devagar. Às vezes, ela sugeria, “vamos parar aqui” e ficávamos olhando a paisagem. Imensa. Deslumbrante. Outras vezes era eu, que arfando, pedia para parar. Fomos subindo assim, medindo limites. Até hoje acho que ela parou muitas vezes só para eu descansar. Fomos falando de coisas. Fomos falando de nossas vidas. Parávamos, olhávamos aquele mundo e continuávamos subindo. Até que, de repente, já era o topo. Eu tinha chegado ao alto da Pirâmide do Sol. Como boa leonina, exultei. Nos abraçamos. Tiramos uma foto para a posteridade.
O que Regina não podia imaginar é que, naquele momento, ela tinha me dado um presente muito maior. Ali, bem no topo, eu entendi que eu também podia escalar pirâmides. E quantas eu ainda iría encontrar por minha vida! Se as de pedra são difíceis, as abstratas parecem cruelmente intransponíveis.

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Mérida foi o primeiro lugar que quis visitar quando cheguei à Venezuela. Cidade encravada nos Andes. Era tudo de que gosto. Fria, aconchegante, com boa comida e lugares exóticos como La Capilla de Piedra e La Laguna Negra. Mas, logo que chegamos a Caracas, houve um grande acidente aéreo em Mérida em que todos os passageiros morreram e isto nos assustou bastante. Fomos adiando a viagem. Até que, em um feriado grande, lá fomos nós.
A viagem foi dividida em duas partes: saída de Caracas com um amanhecer fantástico, decolagem perfeita e depois uma turbulência cada vez mais forte, neblina intensa, muita chuva.
Aterrissamos em um aeroporto pequeno. Como havíamos comprado um pacote turístico, estava combinado que a agência faria o nosso transfer para o hotel, mas ninguém nos esperava. As pessoas foram indo embora e nós lá esperando. Decidimos tomar um táxi e perguntamos ao taxista se só havia um aeroporto no lugar, ao que ele confiante nos respondeu que sim. Pedimos para ir para o hotel.
Silvio não estava se sentindo bem desde o dia anterior. Estava com febre. Entrou no carro e apagou. E lá fui eu, monitorando o motorista por caminhos que eu não tinha idéia de onde chegariam.
Depois de quase uma hora de viagem, por montanhas, rios e uma vegetação ocre e rasteira, achei que havia algo errado. Afinal, o hotel não podia ser tão longe!
Acordei Silvio, quando li uma placa: Mérida a 80 KM!!!
Perguntava ao taxista, em meu espanhol de pé quebrado e mãos atadas, o que estava se passando e ele só dizia que estávamos chegando.
Só depois de chegar ao hotel foi que entendemos o que aconteceu. Como o tempo estava muito fechado, o avião posou no aeroporto de El Vigia que fica a uns cento e muitos quilômetros de Mérida e que tem uma infra-estrutura melhor. Se o piloto avisou aos passageiros da mudança, nós perdemos esta informação.
O dia seguinte foi dedicado a curar Silvio de sua virose. Só no outro dia, pudemos conhecer a cidade. Mérida foi um misto de curiosidade e uma certa frustração. A cidade em si não tem nada de especial. Apesar das montanhas a sua volta, não dá muito para se ter a sensação de que se está no meio dos Andes. Em compensação, os seus arredores, os chamados Páramos, espécie de platôs nas montanhas, são lindíssimos.
Nosso guia se chamava Gabriel, guia turístico e professor de lutas marciais(!). Morava em uma fazendinha em um pueblito próximo a Mérida. Fizemos amizade com ele o que gerou quase um novo pacote. Ele nos mostrou recantos, cachoeiras, pueblos, que ficavam fora do roteiro, mas que certamente fizeram de nossa viagem algo inesquecível. As árvores dos Páramos são um capítulo à parte. Indescritíveis.
Tudo ia bem a dois mil e muitos metros de altura, mas e o teleférico? E o Pico Bolívar? E os quase cinco mil metros? Era tão alto que sequer nós, que já estávamos há três dias na cidade, conseguíamos vê-lo.
Silvio tem um grave problema, não pode ver um teleférico que tem que subir. Eu, apesar de toda a minha experiência no México, estava preocupada. Afinal, as pirâmides eram mais baixas e eu era mais jovem. E Silvio insistindo em ir ao teleférico.
Para meu alívio, como era feriado, as entradas para subir estavam esgotadas. O meu medo não seria o responsável pela não ida ao topo. E afinal, onde estaria o topo? A neblina continuava forte, não dava para se ver o Pico.
Silvio não se deu por vencido. Se não podemos ir ao Pico Bolívar, sigamos pelos Páramos até o Pico Áquila. O guia incorporou o grande mestre Kung Fu e levou a nós, seus gafanhotos, montanha acima. E eu repito: A-CI-MA!!!!!!
Estrada, nuvem, neblina, montanha, refúgios de condores, cada vez menos árvores, vegetação rasteira, frio, luvas, neblina, capelinhas, riachos, rios, pedras, fotos, derrumbes, curvas, curvas fechadas, curvas fechadíssimas, monumento! A minha frente estava uma águia enorme de ferro. Uma pequena feirinha. Uma capela. Neblina. Eu estava a 4.118 metros de altura! Novamente a sensação de vitória. O guia me perguntou se eu estava mareada. Estava. Mas tinha chegado mais alto do que jamais poderia imaginar.
No dia seguinte, era nossa partida. Acordamos cedo para fazer um recorrido rápido pela cidade. Abri a janela do quarto e lá estava ele, inteiro, imponente, coberto de neve. O Pico Bolívar. Por toda noite havia nevado em seu cume. Mediu-me à distancia como se me dissesse “te espero da próxima vez”.

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Acho que a vida é assim. Muitas pirâmides e picos a desbravar. Muito medo de subir, de se perder, de ser imolada pelas grandes alturas. Muita vontade de ver o horizonte lá, bem do alto.
Que eu sempre tenha um amigo que por carinho, paciência ou solidariedade, fique para trás comigo e me diga de forma suave e convincente: “Vamos subir. Vamos devagar. A gente vai parando. Acho que dá pra chegar”.

(para Regina Vasconcelos)

(in à vista del ávila)



4 comentários:

Alzira Willcox disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alzira Willcox disse...

Como sempre, li a sua narrativa de um fôlego só. Como são todas interessantes!
Emocionei-me com alguns trechos, como esse:
"Ali, bem no topo, eu entendi que eu também podia escalar pirâmides. E quantas eu ainda iría encontrar por minha vida! Se as de pedra são difíceis, as abstratas parecem cruelmente intransponíveis."
Como essa afirmativa é verdadeira! Eu nunca escalei pirâmides concretas, mas, metaforicamente, sou especialista.
Ter um amigo que seja para nos apoiar é valioso.
Você é , na verdade, uma grande aventureira. Rsrs.
Bj

Bia Veiga disse...

Bonita demais essa nova história e como é crescente como numa escalada. Comecei a ler pelo final e que lindo poder ter uma amiga que te espera e ao mesmo tempo está ali te incentivando no caminhar, no continuar a escalar as pirâmides, quaisquer que elas sejam, não é mesmo. Voltei ao início e aí sim comecei minha escalada pelo seu texto, foi muito incrível ver que aquele final era o pico.
bjs

Elza Martins disse...

O verdadeiro artista é aquele que faz com que o seu leitor veja o mundo pelo filtro dos seus olhos. Lendo esta narrativa aprendi que podemos acrescentar novos conceitos ao que já temos sobre as pessoas que conhecemos.
Conheci Regina em sua casa na serra e ela se mostrou uma ótima anfitriã. Falava com ela, de quando em vez, ao telefone o dia a dia e a netinha que a encantava. Foi legal descobrir este lado dela. Qeu tenhamos todos uma Regina ou um Silvio a nos incentivar ou, melhor ainda, que sejamos nós as Reginas e Silvios dos nossos queridos. Tenha uma excelente semana, amiga.