sexta-feira, 28 de março de 2014

O CANAL AO LADO


Segunda feira passada. Chego em casa depois de uma viagem rápida, mas cansativa. Hoje em dia, quando me perguntam se tenho medo de avião, respondo sem pestanejar: De avião, nem um pouco. Tenho medo... Pavor ... É de aeroporto!

Estava cansada...

Um longo banho e... Caminha. Liguei a televisão para ajudar o sono a chegar.

Na tela, em HD, um homem barbudo, sem camisa, vestido de tatuagens gritava, gritava, gritava, gritava, gritava, gritava, gritava com uma mulher jovem, tão igual a tantas mulheres jovens, que querem ser jovens e permanecer jovens. O mesmo cabelo. A mesma roupa (embora pouca naquela cena). Os mesmos trejeitos. A mesma autenticidade planejada. O mesmo peito. A mesma bunda. O mesmo silicone. O mesmo olhar perplexo e intencionalmente inocente. E a mulher gritava, gritava, gritava, gritava, gritava, gritava, gritava...

O texto era fraco. Enfadonhamente repetitivo. Então você me escolheu!... Eu não tinha opção!... Então você me escolheu!... Eu não tinha opção!... Então você me escolheu!... Eu não tinha opção!... Então eu me escolheu não opção!!! (Gritavam ao mesmo tempo e não diziam nada... Em horário nobre. No canal mais assistido e respeitado da televisão brasileira. Fiquei pensando em quantos milhões de reais patrocinavam aquele vazio. Aquela boçalidade. Fiquei pensando em quantos milhões de brasileiros assistiam, naquele momento, àquele vazio. Àquela boçalidade...)

Por mais que me digam que o programa pode trazer contribuições às áreas da antropologia, sociologia, psicologia e outros academicismos... Para mim, aquilo era ruim. Pobre. O retrato de um Brasil medíocre e triste. Sobrevivendo a botox.

A mão indignada não resistiu. Tomou do controle remoto e zapeou. E, no canal ao lado, em close, reconheci o rosto de Adélia... Adélia Prado. A poeta Adélia Prado. Um oásis em um deserto! Água pura para se beber. Saboreei. 

E Adélia falou da Vida, de Poesia, de Arte, de Deus. Falou de sua Indignação com o país. De sua Incompreensão. Falou de Guimarães Rosa e de Juscelino Kubitschek. De Literatura e Família. Falou de Vida em cidade do Interior. Falou de Movimentos e de Politica. E, quando algumas vezes, lhe perguntaram algo, ela teve a leveza de dizer: Não sei... Era bonito.

Adélia leu dois de seus poemas. Adélia chorou ao terminar um deles. 

Adélia tomou a minha noite em suas mãos e a iluminou de consistências. A minha noite plena de leveza e solidez. Sua voz mineiramente mansa tinha tanta coisa a dizer. Seu texto, sem marcações pré-estabelecidas, fluía como água doce a procura do mar. 

Naquela noite, Adélia foi o meu país possível e pleno. Foi o meu Brasil sem maquiagem. Foi a terra onde sempre quis viver.

E esse país existe. Tem que existir. Deve existir. Ali, logo ao lado. Em algum lugar bem perto. Perdido na trama de um texto pobre. De um mau roteiro.

Adélia não precisa gritar... Porque tem muita coisa a dizer...

E, quando não sabe, tem a honestidade de falar... Não sei. Era bonito.

Ali. Logo ali. No canal ao lado. Me esperava a minha terra. O meu país. A minha pátria amada... Essa mulher que não esconde a idade. Que não se enfeia a botox. Que não se siliconiza.

Minha terra que sabe falar. Minha terra que tem o que dizer. Minha terra Poeta.

Minha terra... Logo ali, no canal ao lado...

Cabe sim, a cada um de nós ter a força e a determinação de zapear. 

Tem de haver um canal ao lado... Tem de haver...

NOTA: Entrevista de Adélia Prado dada ao programa RODA VIVA em 24 de março de 2014. 

(pblower-vistadelvila.blogspot.com)

Um comentário:

Eulalia disse...

É, querida, o tal do mais respeitado canal, aqui em casa, só tem vez, por engano de clic no controle remoto.

Eu vivo zapeada direto nos "canais ao lado". Pena que eu perdi Adélia... mas vi e bebi a mesma doçura, capatada por você, daquele olhar pensativo e meigo.

Obrigada, querida, lí Adélia através de suas linhas. Mais do que valeu!

bjs