sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

TATUÍS


Acordo com a televisão me informando que os tatuís estão em extinção!

O ecologista falava de maneira pausada, quase zen, mas sua voz grave não escondia a sua tristeza. Enquanto ele discorria sobre as causas da extinção, eu ia acordando entre memórias e sensações.

Tarde de verão em Itacoatiara e eu na praia. Bem na beirinha d'água. Espuma, areia, salgado na boca e lá bem lá longe papai e mamãe. Tudo em seu devido lugar. Tudo seguro e perfeito. Infância...

Entre mergulhos e castelos de areia, eu era a dona da praia. De uma praia de Itacoatiara de muitos anos atrás. De uma praia só minha... Os surfistas? Ah, eles chegaram um tempo depois.

Às vezes, eu  ficava quietinha. Só olhando. O sol entardecendo. O costão. Um passarinho. Uma onda mais forte... E aí eu corria e a furava num salto, sabendo que atrás já vinha outra, e outra mais. São sete ondas fortes e sete fracas. Era isso que papai me explicava. E toma cuidado com a correnteza! Itacoatiara é praia cheia de perigos e surpresas.




Às vezes, eu ficava de pé, bem na beirinha do mar. A onda batia em minhas pernas e eu ia afundando na areia. Mais uma onda e os pés iam um pouco mais fundo. Me imaginava na selva, em filme de Tarzan... Patricia nas areias movediças!!!! Que herói viria me salvar?

Os pés, os dedinhos bem afundados na areia e aí, de repente, um movimento, umas mordidinhas, um formigamento, uma cosquinha gostosa. Era coisa de tatuí.

Então, eu sentava na areia e cavava. Areia entrando nas unhas. Areia na boca. E, de repente, lá estavam eles. Tatuís. Eu gostava dos grandes. Adorava virá-los de barriga pra cima e levantar a cartilagem que lhes servia de escudo para o peito. Gostava de vê-los por dentro. Dava para se ver o tatuí por dentro. Uns grandes tinham uma esponjinha cor de abóbora, acho que eram as fêmeas com suas ovinhas.  



Um de meus primos gostava de comer tatui vivo!! Eu não fazia isso não. Mas tenho que confessar que gostava quando os adultos cozinhavam os bichinhos com azeite e arroz. (Meu Deus! Minha culpa, minha máxima culpa! Sou um pouco responsável pela extinção!!!)


Depois, já era de noite e eu ia pra casa de mãos dadas com mamãe. As pontas dos dedos enrugadas de tanta praia.

É engraçado... A vida passa tão rápido que a gente nem percebe que um mundo de coisas a nossa volta chega e se vai. Se consome e se extingue. Minúsculas perdas que passam no vento...

Um gesto, uma folha, um sorriso, uma estrelinha, uma fala entre linhas, uma fada madrinha, uma história contada, uma canção de ninar, o quentinho de um colo, uma bala, um drops Dulcora, uma borboleta amarela, uma bicicleta azul, um caderno de escola, aquela amiga, a professora querida, as provas e as notas, um cheiro de travesseiro, um fogareiro, a cor da barraca de praia, uma saia, um telefonema, uma pena e a vontade súbita de voar...Tudo mero cenário de nossa história vivida. Tudo sumido ou mudado. Às vezes, nem mais lembrança.

E um dia a gente acorda e descobre que os tatuís estão em extinção.

Os tatuís... Meus tatuís... Os tatuís de minha infância... Minha infância... 

Nunca mais poder afundar os pés na areia e sentir aquela cosquinha gostosa.

Nunca mais...

Num susto relembro Álvaro de Campos: "Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!..."

Nota: Foto retirada do Google images.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

2 comentários:

Eulalia disse...

Dava para fazer um silêncio no lugar do comentário?

Celina disse...

Li o texto, no celular dentro do ônibus a "mais ou menos" 0 grau... E senti gosto de sal, calor de sol e vi aquela Itacoatiara, que para mim era imensa e sempre uma aventura. Que delícia... mas mea culpa! também catei os bichinhos e comi fritos no azeite. Mas também, já não fazem mais Itacoatiaras como antigamente! muita saudade!