sexta-feira, 28 de outubro de 2011

ESTICA A TINTA


Meu pai adorava pintar. Não era pintor de quadros, mas de paredes e, especialmente, grades e portões. Costumava dizer que duas coisas o relaxavam muito, varrer e pintar. Era como um hobby para ele e, com ele, tomei gosto pela coisa. Pintar...

Como sempre moramos em casa, passávamos horas entre tintas, pincéis e rolinhos e nossos portões e grades eram impecavelmente mantidos. Desde criança, fui aprendendo com ele. E ele me dizia e repetia: Você é muito ansiosa. Molha demais o pincel na tinta. Assim vai pingar. Assim fica feio. A tinta fica grossa. Prolonga a pincelada. Paciência... Estica a tinta. Estica a tinta.

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Há uns meses vendi a casa de Itaipu e comprei um apartamentinho no Flamengo. Coisa simples para botar para alugar. Quero alugá-lo já mobiliado. Com cortinas e tapete. Está ficando bem bonitinho. Tem até vaga de garagem. Comprei a linha branca no Ponto Frio no início do mês e ficou combinado que me entregariam tudo no dia 26. Crédula que sou e ansiosa também, dia 26, lá estava eu no apartamentinho, já antes das 8 horas, esperando as coisas. Sabia que tinha uma possível longa espera pela frente, pois as lojas insistem em entregar em horário comercial e o pobre do comprador, depois de ter pago a despesa, ainda tem que se plantar paciente e aguardar sua compra. (Que se há de fazer? Paciência... Estica a tinta!)

Cheguei cedo e, diante da espera, decidi pintar o tampo da mesa da sala. Decidi replicar o tomate seco da parede. (Vai ser a cor do verão segundo revistas especializadas). Dei uma lixadinha básica e esperei. Dei a primeira demão, só para queimar e esperei. Ia pintando e lembrando de Joe Blower... Estica a tinta. Estica a tinta.  Ria para mim e de mim às vezes. E lá fui eu, esticando a tinta. O tempo passando e eu já quase terminava a segunda mão. O tampo estava ficando maneiro. Olhei o relógio e tive um insight. E se o zelador esquecer que eu estou aqui e mandar o caminhão embora? Vou interfonar e relembrá-lo de minha presença.

Caminhão do Ponto Frio? 'Teve aqui sim e já foi embora. (Um frio patagônico percorreu minha espinha!)... Mas não era para o seu apartamento não. Era para o 804. Eu sei que a senhora está aí. (Um calor morno de primavera invadiu meu coração!).

Agradeci. Desliguei o interfone. Quase tentei relaxar. Mas, ansiosa como papai dizia, decidi ligar para o vendedor e checar a entrega. O rapaz me atendeu gentilmente e depois de uma checagem rápida me informou que o dia de entrega havia mudado para a próxima segunda-feira.

Próxima segunda-feira? Como assim? Mas ninguém me avisou!!! Na segunda-feira eu não posso esperar!!! Para quê vocês ficam com o nosso telefone de contato se não fazem contato? Se eu não tivesse ligado para vocês, passaria o dia inteiro esperando uma entrega que não viria!!!!???!!!

Enquanto minha voz ia esganiçando de raiva, o silêncio do vendedor era sepulcral.

Dona Patricia... Dona Patricia... Sim, pode falar, respondi apoplética. Vou tentar falar com meu gerente e ver o que pode ser feito. Vou tentar colocar a entrega na sexta-feira. A senhora me liga daqui a quinze minutos.

Desliguei o telefone e tal qual bicho acuado me entreguei à segunda demão de tinta. Calma, Patricia. Paciência. Estica a tinta!

Enquanto pintava, imaginava o que podia acontecer. Vou ligar e ele não vai atender. Eu sei. Vai acontecer isso... Calma, Patricia. Estica a tinta.

Depois de quinze minutos cravados, liguei novamente. O vendedor atendeu. E num fio de voz me explicou que não poderia mudar a data. Resultado da logística de entrega. Não sei se a senhora sabe que agora o Ponto Frio se fundiu às Casas Bahia e a entrega melhorou muito... Para quem?, perguntei com uma entonação que deixaria Almodóvar com lágrimas nos olhos. Para quem?!!!! E aí emendei com considerações socio-político-antropológicas. O senhor sabe porque só tem um punhadinho de gente nas manifestações contra a corrupção? Porque não há cidadania. Mudar a data da entrega sem avisar ao cliente é resultado disso. É um vale-tudo!!!! O rapaz gemia do outro lado da linha. Dona Patricia... Seu apartamento está vazio? A senhora confia em mim? Se a senhora quiser, eu fico na sua casa esperando as coisas para senhora. (Vi que tinha pegado pesado. Acho que ele participou da passeata.).

Respirei fundo. Lembrei de meu pai... Calma. Estica a tinta. Estica a tinta.

O que não tem solução, solucionado está. Vou ver o que posso fazer na segunda-feira. Se não der para receber, tentamos outro dia antes de minha viagem. (Estica a tinta... Estica. Talvez esta seja a sina dos brasileiros... Quem sabe?)

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Não consigo terminar o texto hoje sem fazer um breve comentário sobre um comercial de TV e acho que está nas revistas também. Uma propaganda da Johnnie Walker. De repente, ao lado do Pão de Açúcar uma montanha se faz, montanha esta que aos poucos vai se transformando em figura humana que ao final do anúncio sai caminhando (correndo?) e, aí, entra a mensagem: O Gigante não está mais adormecido!!!!

Como moro perto do Pão de Açúcar, tenho passado horas observando a montanha para ver a hora em que o Gigante sai correndo enseada de Botafogo afora.  Devo informar que até agora não vi nada, só uns urubuzinhos (gaivotas?) sobrevoando a região. Quem sabe ele surja aos domingos quando fecham o Aterro para lazer? 

O fato é que quando vejo a situação da Saúde e da Educação aqui em nossa terrinha, penso que o Gigante está é sofrendo crises de sonambulismo que se agravam quando  ele tem o pesadelo recorrente que sua filha única, Brasiléia, depois de fazer a prova do ENEM, precisa fazer uma cirurgia de urgência em um hospital conveniado ao SUS. Aí ele se levanta e sai em disparada. Depois do surto, se deita em seu berço esplêndido e aguarda a promessa de um novo amanhecer ao som do mar e à luz do céu profundo.

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É Patricia... Estica a tinta... Estica ...

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

3 comentários:

Eulalia disse...

Muiot bom. Fantástico! Estou às voltas com a propaganda enganosa da Tim... já quase apelando para a Anatel e o Juizado das Pequenas Causas.
Tem razão... o que falta é mesmo alma de cidadania!
beijos

Alzira Willcox disse...

Estica a tinta, Patrícia. Não perca o seu senso de humor, a 'verve'. Não vale a pena.
Tenho em mãos uma poesia - Levantadora de Sonhos. Conhece?
O que me resta
é este fio de aurora
a sair do umbigo
Com ele
entrelaço cores
entreteço o dia
Já levei muita água na cara
Tenho braço bom de nadadora
Sou mulher de seguir contra correntes
Desfaço nós
Um dia ainda subo cachoeiras
A vida vale o esforço
Este espernear de músculos
Este alvoroço.

Paciência...Estica a tinta.Não podemos ficar desiludidos, há que se ter esperança.
Bjss

Celina disse...

Ontem li e reli a seguinte notícia no Le Monde: Le Brésil est prêt à aider l'Europe, par l'intermédiaire du FMI de préférence. O Brasil ajudar a Europa?? Com dinheiro?? Então tá sobrando né?? Haja tinta, primoca, haja tinta!