quinta-feira, 15 de abril de 2010

LISBON REVISITED 2010

Não.

Não foi a chuva fina e nem o frio.
Nem o céu de chumbo que, de repente, se fez em manhã de sol.

Não.

Não foi a visita aos Jerônimos.

Não foi a Torre de Belém.

Nem mesmo a vista imensa e líquida do Tejo lá do alto do Castelo.

Não.

Não foi o Castelo de São Jorge. Nem o elétrico por ladeiras de Alfama.

Não.

Não foram as guitarras. Nem o vinho. Nem as velhas canções.

Não. Não foi o Fado.

Nada pode descrever melhor aquele meu encontro que o meu choro no Martinho da Arcada.

Trinta e um anos sem voltar à Lisboa. Lugar sempre adiado em minhas viagens. E, enquanto esperava, escrevi poemas, uma tese de mestrado, trabalhei, perdi meus pais, me descobri, me perdi, me redescobri... Me apaixonei. Virei outra. E virei ostra ... com pérola dentro. Cresci. E deixei pedaços pelo caminho. E criei pele nova ... para me bronzear! Deixei de escrever... E morri um pouco...



Trinta e um anos e lá estava eu à porta do restaurante Martinho da Arcada ... Olhando. Senhora, já não estamos servindo o almoço. Era tarde. Sorri e me desculpei. Eu queria só dar uma olhada... Eu adoro Fernando Pessoa. Foi como uma senha. O garçom sorriu. Me tomou pelo braço com força e decisão e lá fomos os dois andando entre as mesas. A decoração antiga nos observava como se já tivesse visto aquela cena outras vezes. O garçom, eu e Silvio que nos seguia e observava a uma certa distancia. Venha, por favor... E caminhei até aquela mesa. A única sem toalha. Um copinho de bebida. Um par de óculos. Livros. Sente-se, por favor. E eu me sentei na quina da sala. Na mesa do canto. Aqui ele escrevia. E bebia. E conversava. Quer que eu tire uma foto?



Podia ser só uma mesa para turista ver. Podia.



Como?... Quer que eu tire uma foto? Silvio pegou a câmera ... Olha pra cá.



De repente me lembrei ... O Eu Profundo e outros Eus ... O livro que mamãe mantinha sempre na mesinha de cabeceira. Todo anotado. Trechos imensos sublinhados. Alguns textos dela, escritos nas margens do volume. Patricia, foi você que me apresentou Fernando Pessoa... Como boa ariana, adorava a eloqüência e a volúpia de Álvaro de Campos.



A foto!! Olha para cá!! [Não há na travessa achada o número da porta que me deram...]



Olhei. E, por mais que quisesse, não conseguia fingir. Ela está chorando! Silvio sorriu (ele me conhece). O garçom, surpreendido, não sabia o que fazer. Foi quando uma senhora que estava na única mesa ainda sendo servida se aproximou da cena. Era brasileira e o marido dela era um pessoano apaixonado. Ela me disse que ele tinha se emocionado com o meu choro. O casal nos ofereceu um Porto. Silvio falava com as pessoas e eu ali anestesiada. [Escrevo por lapsos de cansaço...]



Eu continuava chorando. Um choro engolido por meu desejo de não chorar. E me vi em uma sala. A banca diante de mim e eu discorrendo sobre o aspecto da negação na poesia lírica de Fernando Pessoa. A que chamei... A Trajetória do Nada. Era um dia de muito calor. Papai estava na sala, em uma das últimas cadeiras e me olhava de longe. [Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...]



O garçom chegou com o Porto. Tentei ser sociável. Não sei o que me deu...Me emocionei... Chorei o choro das coisas deixadas por fazer. O choro das coisas não ditas. De uma saudade dos meus. De uma saudade de mim. Quando eu era... sei lá... [Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —].



A tarde se fechou com um Porto e troca de cartões.


No dia seguinte fomos à Brasileira do Chiado. Muito tumulto. Muitos turistas. Como uma turista a mais, coloquei minha mão sobre a do poeta. Tentei entrelaçar carne e bronze. Queria dizer-lhe: Estou aqui. Pode me reconhecer? Aquela... É verdade, já faz muitos anos. E, em um lapso de tempo que não passou de segundo, ele me olhou e me sorriu. Também apertou a minha mão e me segredou... Não: não quero nada. Já disse que não quero nada. ... Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! ] 


E entre frio e muita gente, me levantei da cadeira e parti. De longe, ainda me virei para observá-lo. À sua volta, um grupo de alemãs tirava fotografias.

Nota:Em negrito, fragmentos dos poemas Lisbon Revisited 1923/1926
Nota: Foto by Silvio Wouters

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

6 comentários:

Celina disse...

Minha querida,
Assim não há coração que resita!!!
Eu que acompanhei todas essas fases ao seu lado,entendo profundamente seu choro. E eu que sempre chorei baldes nesses momentos, chorei mais um vez. Lindos momentos! O que você passou e descreveu, e o que eu passei lendo.
Muito obrigada, primoca!

Eulalia disse...

Aqui, em Bogota, depois do melhor curso de Reiki que eu fiz, termino minha viagem, lendo um de seus melhores textos. E choro, emocionada contigo, por meu curso acabado e por esta leitura maravilhosa!
Parabens, querida, como sempre!
beijos

VERA disse...

Pat simplesmente emociante!!!!!!
Beijão
Verinha

pblower disse...

Pat,
Que lindo!!!!Vc nessa retrospectiva...nem tenho palavras..gostei dos comentários de Celina...é exatamente como me sinto.
Muitas saudades...
Beijos de todas nós
OBS: não consegui deixar esse comentário no blog...
Denise Duarte

monica disse...

Oi Patricia,
li o post há uns 5 min. e precisei de um tempo pra escrever, de tanto que chorei. Tenho uma afeição enorme por Portugal, pretendo voltar e levar João para conhecer um país que tanto amo.

Mônica

Alzira Willcox disse...

Sem palavras, Patrícia...Delicado porque delicadas são as suas lembranças. E Pessoa.
Como sua mãe, tenho o livro "Obras Completas" em minha mesinha, também marcado e comentado. A poesia de Pessoa - qualquer dos heterônimos - me toca profundamente.
E vc, com seu dom especial de escrever, também.