quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

UMA FOTO ANTIGA


Decididamente o Ávila continua me impondo um voto de silêncio. Aceito a proposta e me calo.

 
Quando criei o blog, tinha a idéia de não publicar fotos de pessoas, pensava que se não houvesse rostos, todos os rostos poderiam estar presentes. Caberia à imaginação de cada um preencher as lacunas. O que eu queria registrar eram as paisagens ... plenas, bonitas, inesperadas. Oferecer os cenários. Desta vez, abro uma exceção.

A foto é antiga, 1947, e o homem é Henry Swinburn Blower, meu avô paterno. Também conhecido como vovô Daddy. Como os filhos lhe chamavam de daddy, os netos incorporaram o epíteto e... ele virou o vovô papai.

Não tenho muitas recordações dele. Ele morreu quando eu tinha uns dez anos e já estava muito velhinho quando eu comecei a me entender como gente. Os meus primos mais velhos, sim, contam histórias deliciosas sobre ele. Sobre as brincadeiras, em especial a caça ao tesouro feita no quintal enorme da casa. Para mim, não houve recordações tão cheias de aventuras. A primeira lembrança que tenho dele aconteceu em um domingo chuvoso quando Daniel, meu primo, e eu tentávamos construir castelos de cartas. Imaginem dois pequerruchos de cinco ou seis anos no maior esforço para manter a construção de papel e imagens. Para cada novo andar, o desabamento era inevitável. E vovô lá, no canto da sala, sentado em sua eterna cadeira, só olhando. Me lembro que aquela nossa luta em glória o foi irritando e ele começou a resmungar em seu inglês castiço, Damn!!!! Se levantou, agarrou o baralho e com suas mãos enormes, com os dedos manchados de nicotina, foi construindo o castelo. Como em um passe de mágica, paredes e telhados foram surgindo e, melhor que tudo, ficando de pé. God bless you, aprendi com você a construir meus primeiros castelos.

Também me lembro dos natais e dos crakers que ele preparava cuidadosamente e era na hora dos presentes que aqueles cilindros de papelão e celofane explodiam em balas, apitos e lembrancinhas.

Vovô nasceu em Liverpool no final do século 19 e veio para o Brasil com vinte e um anos. Como bom inglês, foi morar em Niterói e ali criou uma família e viveu por mais de sessenta anos. Nunca mais voltou à Europa, mas sempre que falava em Home estava se referindo a uma Inglaterra que não existia mais.

Era britanicamente metódico. Me lembro, quando a casa foi demolida, a surpresa de papai ao ver, na pedra mármore do filtro, um cavadinho. Era a marca do copinho em que ele tomava o seu vermute. Tantos anos, sempre deixando o copo no mesmo lugar. Um caso de erosão!

Mas afinal, por que justo hoje decidi falar sobre ele? Porque ando achando que foi de vovô que eu herdei o meu gen de International Vagabond.

Fiquei sabendo dessa história há pouco tempo atrás em uma conversa com um de meus tios. Ele me contou que, depois de trabalhar muitos anos de terno e gravata, quando se aposentou, vovô pegou a maioria de suas roupas e arrancou as golas (the white collar que aprisionava a gravata), cortou as mangas das camisas e as pernas das calças. Criou um modelito básico de bermuda e camisas de manga curta. Entregou-se às sandálias (de couro, como as de frade) e passou a se dedicar a seu cocker spaniel, chamado Kim, e a seus papagaios. Passou a curtir a vida do jeito que ele queria, entre bichos, livros, suas ferramentas e a oficina e os passeios pela praia de Icaraí. Criou o seu ritmo... até o fim.

Vovó contava que a última refeição que ele fez antes de falecer de um terrível enfisema foi um bom prato de ostras com cerveja preta. Tudo de bom! O prazer pela comida e bebida runs in the family.

Também cortei com a tesoura de meus sonhos minhas golas e mangas. Ah! E meus saltos altos também.

Uma foto antiga, como uma paisagem. Uma parte de um mapa mágico e pessoal onde tracei meus caminhos. Onde risquei, com lápis grosso e vermelho, minhas passagens e meus desvios na busca da direção certa. Talvez um atalho perfeito no rumo da alegria.


Nota: Estou publicando antecipadamente o texto, pois amanhã saio de viagem e não vou levar computador. A direção vocês vão saber na semana que vem. Afinal... Navegar é preciso.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)




3 comentários:

Anônimo disse...

Pat querida que lindo texto!!!
Com o teu empenho em ser feliz aonde for,serás sempre uma eterna vencedora "feliz"!
Aprendo um monte contigo.
Beijos
Vera

Eulalia disse...

Foram atalhos? Não sei... não consigo vê-los assim, pois entendo cada uma de suas pegadas como marcas muito bem traçadas em seus caminhos, passo a passo, registradas e consentidas pela sua força de viver, pela sua presença sempre constante aos apelos da vida, fossem eles pessoais, profissionais, afetivos...

Mas entendo os seus "atalhos" (sorriso)

monica disse...

Maneiro o vovô Daddy. Taí uma pessoa que faz falta na família: o vô; não os tive, nem João.
Bjs,
Mônica