segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

UMA CONVERSA EM CÔLÔNIA TOVAR

A Colônia Tovar é um pueblito que fica a umas duas horas e meia de Caracas. Fundada por imigrantes alemães no inicio do século 19, esta região é um pedacinho da Alemanha em plena Venezuela. É como um cinturão verde de Caracas. De lá, chegam as mais deliciosas comidinhas para alimentar os caraquenhos: legumes, verduras, embutidos. E é lá que se encontram os pêssegos e morangos mais perfeitos, que podem ser comidos como vieram ao mundo, mas que também podem ser transformados em sucos inesquecíveis. Como Petrópolis no Rio, aonde nenhum turista pode deixar de ir, uma visita à Colônia é um must para todos aqueles que nos visitam em terras venezuelanas.
A regra, portanto, não foi quebrada quando tio Mauro e tia Dorinha decidiram nos fazer uma visita e comemorar suas bodas de ouro. Grande emoção. Uma nova lua-de-mel.
Chegaram e foram se integrando à terra. Tia Dorinha sofrendo de um mal terrível. A impossibilidade de se comunicar com as pessoas. Se ela sai e não consegue encontrar alguém conhecido ou fazer um novo amigo, sofre de solidão e frustração profundas. (Silvio diz que eu estou ficando cada vez mais parecida com ela!) Entender, ela até que entendia um pouquinho o que as pessoas diziam, o problema era quando queria falar e contar mil coisas para suas possíveis novas amizades. Empacava. Gaguejava. Olhava para mim pedindo socorro. E fazia um gesto como se se desculpasse. Finalmente segredava a seu interlocutor: “Não sei falar espanhol!”
Enquanto Silvio trabalhava, visitamos tudo em Caracas. Eu estou me tornando uma brilhante guia turística da região. Mas quando foi a hora de irmos à Colônia Tovar, fiquei sem coragem de ir sozinha com os dois, e decidi contratar um motorista para nos levar. Sr. Jose Carlos foi indicação de Walter e me pareceu uma pessoa gentil e muito atenciosa. Mulato alto, colombiano, sofria de síndrome semelhante à de titia: compulsão de falar.
E lá fomos nós montanhas acima. O pueblo fica a mais de dois mil metros de altura. O motorista e tio Mauro na frente e tia Dorinha e eu no banco de trás.
Era comovente ver o diálogo que se desenrolava entre meu tio, levemente surdo e não falante de espanhol e o prolixo motorista. A uma certa hora, não sei se por cansaço ou desespero, tio Mauro caiu em sono profundo. Sr. Jose não desistiu e atacou a nós duas. Contava coisas que eu ia traduzindo para titia e ela expressava opiniões que eu informava ao motorista. Eu, entre dois falantes compulsivos. A cada minuto, ela se desculpava e maldizia sua incapacidade de se comunicar na língua de Cervantes, ou melhor de Gabo, que fica mais apropriado e sem os barulhentos fonemas de Espanha.
Chegamos à Colônia Tovar e meus tios se entregaram ao consumo de couros, camisetas, cerâmicas, biscoitinhos, mel, e tudo mais que o lugar oferece. Visitamos a igreja, que acho que é a única no mundo em forma de L. Tiramos fotos de flores e de plantações de morangos dependuradas nas encostas dos montes. Fomos à feirinha. A incapacidade lingüística foi um pouco esquecida, mas não de todo, pois em todas as tiendas titia conseguia mostrar as fotos de seus netos e listar todas as inumeráveis qualidades dos pimpolhos.

Aqui cabe uma parada e uma explicação. Muitas vezes, vivendo na Venezuela, me senti em um anúncio do CCAA. Essa coisa dos brasileiros de acharem que falam portunhol e ponto final é muito engraçada (esta palavra um falso cognato, um falso amigo. Engrasada significa coberta de gordura, de grasa!) Há um montão de palavras que soam e são iguais às palavras em português, mas que significam coisas completamente diferentes. Agora, por exemplo, depois de algum tempo vivendo aqui, já consigo dizer aos garçons, com alegria e naturalidade, que a comida está “muy exquisita!” E já tomo “una buseta”, sem nenhum escrúpulo, apesar de todas serem bastante desconfortáveis.
Quando meus tios chegaram, rimos muito falando dessas palavras iguais e tão diferentes. E eu os adverti que, em hipótese alguma, usassem os termos “pinga” e “cuca”, respectivamente a forma mais vulgar de se referir ao órgão genital masculino e ao feminino. Rimos muiiiito. Tudo estava chévere (legal, bacana, sinistro!!!). Palavra que faz parte de qualquer diálogo por aqui. E quando não é chévere, é cheverísimo. Eles adoram um superlativo.
Voltando à “pinga” e à “cuca”... Titia entendeu que eram palavras proibidas e passou um bom tempo repetindo as duas: “pinga e cuca”, “pinga e cuca”. Ria e dizia: “isto não se pode dizer.”

Voltando à Colônia Tovar ... Chegou a hora do almoço e decidimos convidar Sr. Jose Carlos a comer com a gente. Fomos ao Restock, um restaurante onde se come comida alemã maravilhosa e se toma um trago secreto, que ninguém sabe a receita.
A comida foi servida. Chegaram os tragos e a cerveja típica da região. Aos poucos, a conversa se fazia. Eu funcionava como tradutora. Tia Dorinha e Sr. Jose falavam pelos cotovelos, tio Mauro decidiu apenas comer. E foi aí que eu decidi explicar a Sr. Jose o porquê de meus tios estarem na Venezuela. Falei das bodas de ouro e brinquei sobre uma nova lua-de-mel. O colombiano, alegre e gentil, fez a pergunta que todo mundo faz quando se conversa com um casal que faz 50 anos de casado. Em bom espanhol, perguntou a titia como se consegue manter um casamento por tantos anos. A resposta veio rápida e instintiva, alegre e já quase intima. Titia bateu com o dedo na testa e pontificou em excelente portunhol: “tem que se ter buena ... cuca!!!”
O colombiano, ainda sem entender por que titia batia tanto com o dedo na cabeça, empalideceu, gaguejou. Quase caiu da cadeira. Eu tomei da palavra e comecei a falar do tempo em Caracas. Tio Mauro continuava comendo ...

Quando chegamos em casa, titia me perguntou o porquê de eu ter mudado de assunto tão rapidamente e eu fiz uma rápida revisão sobre falsos cognatos, palavrinhas iguais e perigosamente diferentes. Ela ficou roxa de vergonha.

Decididamente estava muito embaraçada ... ou, diante de uma nova lua-de-mel, seria embarazada(*)?


(*) embarazada = grávida

(in à vista del ávila)



4 comentários:

monica disse...

Oi Patricia,

Ri que me acabei. Que legal o Sr.Mauro e D. Dorinha visitando a terrinha. Dá para ver com muita clareza D. Dorinha no momento 'tem que ser boa de cuca' apontando pra cabeça.
Bjs,
Mônica

Alzira Willcox disse...

Falar espanhol acaba sendo complicado exatamente por conta dos falsos cognatos. E, além do mais, existe a dinâmica da linguagem e os termos locais. Impagável a história, mas eu ficaria muito embaraçada (em bom português!) com tal gafe...Rsrsrs.

nathalia grigorovski almeida kuyven disse...

oi patricia,
falando diretamente da cidade maravilhosa, rio 40º!! quero registrar meu agradecimento pelo teu acolhimento em caracas. obrigada pela gentileza e hospitalidade. estou aqui acertando a viabilidade de meu ano sabático...muitos passeios nos esperam! dê um beijos em todas aí,
nathalia

Lúcia disse...

Olá Patrícia,

Essa estória está ótima! Elza e eu rimos muito quando comentamos que havíamos lido seu blog. Imagino algumas figuras da minha família agindo de modo muito parecido à sua Tia Dorinha, rs. Acho que toda família tem uma Tia Dorinha, um Sr. Mauro e por aí vai.
Adorei, me diverti, me encantei.
Obrigada.
Beijos e abraços,
Lúcia