quinta-feira, 13 de novembro de 2008

LA GORDA


Minha mãe era baixinha, magrinha, bem mignonzinha e por qualquer motivo, alegria, tristeza, ansiedade, zanga, fosse o que fosse, dizia peremptória: “Trancou. Não consigo comer nada!”. Puxei à família do meu pai.
Adoro comer, beber, visitar diferentes sabores, curiosidades culinárias. Sou o que se poderia chamar de uma turista gastronômica. Conhecer novos lugares para mim implica, necessariamente, em comer o que seu povo come. Beber o que ele bebe.
Meu primeiro contato com a comida criolla venezuelana foi no restaurante La Gorda que fica em um pueblito próximo a Caracas, chamado El Hatillo.
Uma aventura regada a muito papelón con limón.

EL HATILLO
(Caracas, novembro de 2008)

Eu continuava sem carro e saindo muito pouco. Os dias iam ficando cada vez mais longos e cada vez mais lindos. Estávamos no período de seca e cada amanhecer me reservava uma vista mais deslumbrante Del Ávila.

A vida seguia entre idas ao supermercado, assistir televisão e decifrar as notícias, conversar com Yanette e Lucy, ter aulas de espanhol e curtir o que eu não vivia há anos – o ócio absoluto.

Um dia, acordei decidida. Ia fazer uma aventura.

Já haviam me falado de El Hatillo, e me diziam que era como um mini Pelourinho. Decisão tomada. “É pra lá que eu vou. Vou almoçar por lá e conhecer o lugar.”

Durante a aula de espanhol, conversei com Claudia sobre meus planos e descobri coisas que poderia fazer por lá. As principais indicações: comer pabellón criollo e tomar papelón con limón no restaurante La Gorda e visitar uma loja de artesanato, chamada Hansi.

Aula terminada, começou o duro ofício de conseguir um táxi que me levasse ao pueblo.

O taxista era um rapazote caladão. Negociamos o preço da corrida (não há taxímetros na Venezuela) e os 30 mil bolívares acertados indicavam que o lugar não era muito distante.

Visitar um pueblito... Enquanto seguíamos para lá, minha imaginação fervilhava entre filmes de cowboy e as aventuras de O Zorro. Casas com pátios internos. Donzelas com mantilhas. Ruas empoeiradas onde bandidos e mocinhos duelavam. Mas quando voltava à realidade, continuava no perímetro urbano e, às vezes, engarrafada.

De repente o motorista falou: “Llegamos.” Parou o carro e olhou para mim. O diálogo que se seguiu foi uma mistura de portunhol e pânico. Eu estava em uma esquina de um subúrbio do Rio!?! Não podia ser ali. E o mini Pelourinho? E o Zorro? “Llegamos.”, repetiu o motorista.

Desci do carro. Não queria voltar para casa vencida. Tinha de haver pelo menos um restaurante onde eu comeria pabellón criollo e tomaria papelón con limón. Fosse isso o que fosse. Claudia não tinha me explicado o que eram as comidas, só disse os nomes. Tinha de haver uma loja de artesanato chamada Hansi. Fiz, então, o que qualquer pessoa de bom senso na Venezuela faria. Perguntei a um transeunte, talvez um primo distante do Sargento Garcia, onde ficava a praça Bolívar. Aqui, cada pueblo, pueblito, grande metrópole tem pelo menos uma praça Bolívar, ponto mais importante do local. A resposta veio rápida. “Arriba.” E me indicou uma ladeira. Subi.

Cheguei à praça Bolívar ao meio dia em ponto e a sol a pino. Encontrei o que procurava. Uma praça, com estátua ao centro, cercada de casas do século XIX. Coloridas, restauradas. A maioria transformada em lojas. Num lado da praça uma igrejinha linda. Pequena, mas imponente. Achei melhor procurar La Gorda, o que não foi tarefa difícil. Desci uma ladeira e lá estava o restaurante. Janelas abertas. Quase um botequim ... mas imponente.

Entrei e pedi com precária desenvoltura a bebida e a comida. E enquanto esperava os pratos me bateu o medo. Eu tinha acabado de retirar a vesícula, tinha pouco mais de um mês da operação. O calor era muito forte. E se a comida fosse muito condimentada como no México? E se a bebida tivesse um teor alcoólico maior que o da tequila? Vi a cena se concretizar. Eu saindo cambaleando do restaurante e caindo em decúbito dorsal aos pés da estátua de Bolívar. O herói em armas enfrentando os espanhóis e eu vencida por uma dose mais forte de pimenta. Só Claudia sabia que eu estava lá e até ligarem o nome da falecida ao desaparecimento de uma brasileira em Caracas poderia levar dias. Era a total indigência.

O mesonero me tirou do pesadelo. Trazia um copo grande com uma bebida bem gelada. “Buen provecho.” A sede superou o medo e eu bebi. Papelón con limón, ou suco de rapadura com muito gelo e limão. Não era alcoólico. Era doce e gelado. Logo depois, chegou o Pabellón criollo e me senti no jardim de infância. Carninha desfiada, arroz, feijão preto e bananinha frita. Só faltou o garçom me dar a comidinha na boca. Meu fígado em lágrimas agradecia.

Saí do restaurante me sentindo uma nativa. Criolla!!!!! Fui à loja Hansi. Visitei a Venezuela através de cerâmicas, palhas, frutas de madeira, santos, velas e presépios. Eles amam presépios, ou pesebres, como chamam por aqui. Ainda deu tempo de eu conversar com gente do lugar. Só não deu para eu tomar uma chicha perto da igreja. Um suco de arroz doce com leite condensado e canela. Eles adoram doces. O vendedor só chegaria às cinco horas da tarde.

Uma senhora me indicou onde tomar um táxi de volta a Caracas, e como havia ainda manifestações de estudantes em algumas das principais ruas e avenidas, o taxista pegou muitos caminos verdes até eu chegar em casa. Descobri um emaranhado de ruelas, caminhos, estradinhas que cortam as colinas da cidade. Atalhos perfeitos para se fugir dos engarrafamentos ... Bem, mas isto é uma outra história que fica para eu depois contar.



PS: Dia 23, eleições na Venezuela! Que seja um processo pacífico e que os resultados sejam muito bons para este povo que eu tanto amo!

7 comentários:

Alzira Willcox disse...

Muito bom empreender esse passeio por Caracas, seus costumes e comidinhas através dos seus relatos. Sua narrativa é rica e me fez sentir-me na praça Simon Bolívar, em direção ao "La Gorda". Rsrs. Como sempre, adorei.

Unknown disse...

Patricia

ainda estás me devendo la chicha del Hatillo, lembras?

Bia Veiga disse...

Oi Patricia,
quanta alegria na sua história, me vi aqui rindo sem parar e meu marido sem entender, rsrs...
Que fotos mais maravilhosas, que ângulo e que luz incrível no Del Ávila. Quero sim conhecê-lo um dia.
Ps.: Torço e acompanho a história desse país que você está habitando e que já gosta tanto do povo. Penso que vou aprender a gostar daí e vai ser através do seu gostar e do seu contar histórias.
Beijos e boa semana. Até a próxima história. Já vivo numa novela. Muito bom te conhecer.

Elza Martins disse...

Querida Pat: Que bem me faz ter você por "perto". A vida é muito engraçada. Enquanto próximas nos mantivemos, por conta de vidas profissionais atribuladíssimas, um pouco distantes. Agora que o espacial nos distanciou meu coração se sente pertinho do seu. Benditas todas as terças feiras e suas maravilhosas estórias sobre a Venezuela.

Lúcia disse...

OLá Patrícia

Bia e Elza já falaram quase tudo...
Também fico ansiosa aguardando as terças-feiras para acompanhar belas suas histórias.
Que o dia 23 seja o início de um tempo de boas mudanças por aí.
Grande abraço,
Lúcia

VERA disse...

Pat,Caracas e tudo mais descrito por ti tem cara de sonho.....
Mostra bem a tua felicidade;que ela vá aumentando cada vez mais e nos deixando com agua na boca....
Beijos

Eulalia disse...

Patrícia!
Revivi o cheiro gostoso da pós chuva que nos levou a Hatillo e o aconchego de La Gorda através de suas palavras coloridas e brilhantes. Quase cumprimentei aquela imensa estátua da praça, reconcretizada em mim pelas suas linhas. Que saudade me deu... felizmente, só de Hatillo, pois não preciso mais ter saudade de poder ler você, de novo, poesia e prosa, com frequência!
Beijinhos
lali