sexta-feira, 27 de abril de 2012

JORGE



Era dia de São Jorge e a noticia chegou de chofre, de surpresa. Foi no cair da tarde que o telefone tocou e fiquei sabendo que Jorge tinha falecido. Jorge, que Jorge? ... Jorge. Jorge Pinheiro.

Depois do susto, da incredulidade, da indignação, vieram as perguntas inevitáveis... Mas de quê? O que aconteceu? Acidente? Infarto?... Não. Foi dengue. Dengue hemorrágico.

[Ó São Jorge, meu Santo Guerreiro, invencível na fé em Deus, que trazeis em vosso rosto a esperança e confiança, abrí meus caminhos.]

A gente vê na televisão. Sabe que há uma epidemia de dengue na cidade, mas sempre acha que o perigo e a morte ficam ali, presos por trás da tela, em seu aquário de notícias ruins e diárias. Com a gente nada acontece.

[Eu andarei vestido e armado com vossas armas para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem e nem pensamentos possam ter para me fazerem mal.]

Jorge era professor por formação. Nunca deixou de ser professor. Foi gerente de algumas filiais da Cultura Inglesa. Nunca deixou de aprender e ensinar. Tinha um sorriso de menino levado e era amigo. Sabia fazer a piada certa na hora certa e era amigo. Amigo de muitos. Gostava de festa. Tomava cerveja. Brincava e falava a sério com o carinho das pessoas boas. Era amigo de todos. Jorge era carioca de Sâo Cristóvão. Um amigão.

Quando fui trabalhar na coordenação acadêmica, no escritório central, logo no primeiro dia, antes de entrar no trabalho, parei na padaria para tomar um café. Ele estava lá. Jorge, tô com um medo danado. Será que isso vai dar certo? Ele sorriu. Que bobagem. Cê é boa! Vai em frente.

Ele não me deu a mão, mas entramos juntos no prédio. Ele não me deu a mão, mas me deu muita força para eu entrar e seguir e fazer meu trabalho.

[Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrar.]

Não consigo entender como já na segunda década do século XXI, em um país que é a sexta economia do mundo, as pessoas morrem de dengue. E de tuberculose. E de miséria. E de ignorância. E de descaso. E de descompromisso.  Morrem de desrespeito. Morrem de desesperança. Morrem de lixo. De falta de vontade política. De falta de educação. De falta de hospitais decentes. Morrem de falta de respeito pelos professores. Morrem de descuido pelos médicos... Não consigo entender.

[Glorioso São Jorge, em nome de Deus, estendei o vosso escudo e vossas poderosas armas, defendendo-nos com vossa força e grandeza.]

Somos o país do presente com as nossas ilhas de saber e nossa ingênua soberba. Somos o país do presente que tem de importar engenheiros porque de nossas escolas saem milhares de analfabetos funcionais. Fizemos e reconstruímos muitas estradas, mas ainda não encontramos o nosso caminho. E ainda se morre de dengue, de descaso e de desrespeito.

[Ajudai-nos a superar todo o desânimo... Dai-nos coragem e esperança... Fortalecei nossa fé... Auxiliai-nos em nossa necessidade.]

Sabe, Jorge. Ontem à noite fiquei olhando pro céu. A lua está em quarto minguante. Era uma unhinha branca perdida em azul. Não consegui ver o São Jorge e nem o dragão e nem a você que, tenho certeza, estava  bem ali batendo um papinho com o santo, falando de futebol.

Um beijo grande, amigo, e fique em paz.

[Amém.]


Nota: Em destaque, o texto original da oração a São Jorge.

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

FILHOTES DE BROMÉLIAS


Estávamos sentadas na varanda. Uma querida amiga e eu. Era de noite e, apesar do outono abafado, havia uma brisazinha gostosa que vinha lá dos lados da Enseada de Botafogo. Estávamos botando os assuntos em dia quando, de repente, ela me perguntou Você tá bem feliz aqui no Rio, né?. Uma pergunta/afirmação assim de chofre. Uma pergunta que já era resposta e celebração.

Sorri de lado. Às vezes eu dou um sorrisinho de lado. E, assertiva, respondi,  Tô. Muito!  Mas depois complementei Acho que estou.

E aquele Acho que estou ficou rodando na minha cabeça.

Ela foi embora e fiquei remoendo a resposta... Acho que estou... Acho que estou...

Foi invadida por um mundo de perguntas bisbilhoteiras. Afinal, ser feliz é o mesmo que estar feliz? A gente pode ser feliz e não estar feliz? E o contrário também funciona? Estar feliz e não ser efetivamente feliz? E se eu fosse inglesa ou francesa? Essas questões cheias de sutilezas se perderiam em um só verbo? To be or not to be... C´est là la question!

Não tenho pretensões de filosofar. Só fiquei remoendo a resposta.


Por que, afinal, o que é mesmo a felicidade? O que é ser feliz de verdade? Acho que cada um vai ter sua resposta para estas perguntas. Respostas pessoais e intransferíveis.

E olha que nem estou colocando na mesa a alegria. Que é outra coisa. Ou será a mesma? Ou será a causa ou a consequência da ou para a felicidade? (Se dependesse de mim alegria vinha sempre em letra maiúscula... ALEGRIA... Existe palavra mais feliz que esta?) 

Já disse, não quero filosofar. Só fiquei assuntando. Remexendo meus baús. Revisitando emoções. Me perscrutando para saber de onde tinha vindo aquela resposta Acho que estou.

Será que a felicidade passa por uma avaliação racional onde você pensa, acha, acredita que é ou está feliz? (Ai, esses dois verbos me atrapalham agora!)

Ou será a felicidade algo instintivo... genético... antropológico? O individuo é feliz porque nasceu feliz. Faz parte da tribo dos felizes.

Sei lá. E nem quero filosofar sobre isto. Eu só sei...   




... que um dia eu ganhei uma bromélia amarela e com ela dividi deliciosos momentos. Ela foi uma companheirona. Muitas vezes nos entreolhávamos e eu sabia que ela me compreendia e estava por perto.

Eu a regava. Conversava com ela. Limpava o vasinho, sua morada. E ela me retribuía existindo... sendo amarela... tendo umas folhas verdes e descabeladas. E mesmo quando feneceu... (Foi ficando marronzinha, marronzinha, até que a empregada a arrancou do vaso. Eu não tive coragem.) ... E mesmo quando feneceu, me deixou filhotes, que se espalharam por minha varanda.

E, todos os dias, eu os rego. Falo com eles. E limpo seus vasinhos.

Acho que a felicidade tem muito a ver com essa bromélia amarela. Mesmo quando fenece, deixa seus brotos. E cabe à gente jogar o vaso fora ou replantar as mudinhas. E rega-las. E falar com elas. Limpando sempre seus vasos.

E aí, não importa se a gente é feliz ou acha que é feliz, porque sempre vão surgir outras bromélias amarelas. Amigas. A nos fazer companhia e a nos compreender com um olhar.

Sabe, não sei bem se a isso se pode chamar de FE-LI-CI-DA-DE, mas tenho certeza  que isso tem um nome e que todo mundo conhece. Isso se chama VIDA!

Nota: Este texto é dedicado a  Lourdinha Carnaval, minha companheira inseparável de tantos momentos felizes.



[Quem quiser saber mais sobre Lourdinha é só buscar no blog os textos: LOURDINHA CARNAVAL (fevereiro, 2011) e UMA FÁBULA (agosto, 2011)]

(in pblower-vistadelvila.blogspot)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

DE CIDADES E PROFESSORES


A pedidos, vou publicar o texto da semana passada no original, isto é, em espanhol. A professora já o avaliou e devo dizer que não me saí mal. Antes, porém, gostaria de fazer um breve comentário.

Passei grande parte de minha vida em salas de aula, como professora. Talvez por deformação profissional, eu ache que estar ali, mais que à frente, junto aos alunos é tarefa muito além do especial. Há um ditado conhecido que diz: Quem sabe faz. Quem não sabe ensina. Ele é a prova inequívoca de como há pessoas equivocadas. De  que se pode passar pela vida sem aprender nada, só se achando o máximo porque sabe fazer alguma coisa.

Quem ensina sabe (ou precisa saber!) e mais que isso, não se acomoda em seu saber. Quer mais. É curioso. Se põe à prova. Arrisca.

Quem ensina sabe (e como é bom saber!) que está participando com o outro. Está junto. É parceiro de vitórias e mão amiga e solidária nas derrotas.

Quem ensina aprende... E por isso pode fazer cada vez mais. (Precisa fazer cada vez mais neste nosso país que muitas vezes se satisfaz em fazer... Fazer por fazer... Sem reflexão e olhar crítico... Um fazer de tarefeiro e não de criador.)

Voltar à sala de aula, como aluna, é talvez a maior forma de me exercitar como professora. Sentir o que meus alunos sentiram. A insegurança. As pequenas alegrias. No texto da semana passada, eu me perguntava: Que nota a professora vai me dar? Será que era isso mesmo que ela queria? Imagino quantas vezes meus alunos se fizeram estas perguntas. E me pergunto se fui suficientemente solidária e atenta a seus temores.

Então, antes de transcrever o texto, quero dizer que sempre tive muita sorte com meus mestres e, hoje, ter como um deles uma menina (para mim é menina), formada pela Universidade de Salamanca me ajudando a rever coisas, me ensinando muito e, principalmente, me fazendo pensar é uma grande alegria.

Quem sabe faz... Quem ensina... Faz duas vezes.

Entonces... Passemos ao texto. E para quem gosta do jogo dos sete erros, aquela coisa de encontrar diferenças em coisas que parecem iguais, informo que apesar de ser o mesmo texto, por estar em outra língua apresenta pequenas modificações. Se quiserem brincar... Têm aí uma oportunidade.

LA CIUDAD POSIBLE
Laura me ha pedido que escriba un texto sobre una ciudad. Un texto lírico, casi poético… No tengo ganas de hacerlo. No tengo ganas…
¿De que ciudad puedo yo hablar? ¿De Rio? Es demasiado obvio. Vivimos aquí. La conocemos con sus contrastes e ilusiones. Tan maravillosamente cruel. Tan cruelmente bella. No…
¿Quizás Caracas? Pero he hablado tanto de allá. La ciudad y su mágica montaña donde guardé tesoros hechos de sorpresas y mucha felicidad. No… Tampoco Caracas es una buena opción.
Y, de repente, me veo  cruzando calles estrechas con sus aceras de piedra. Estoy ahora en Roma. E poco a poco mi silencio de turista solitaria se pierde en la ruidosa ciudad.  Roma es mi ciudad. Abierta. Inmensa. En cuyas calles y plazas se diluye la Historia. Roma es hecha de monumentos y gente y tráfico y nostalgia. Fundada por una loba, tiene el  alma salvaje.   
Y después una ventana. Y es a través de ella que miro la neblina de afuera. Todo gris. Todo. ¿Dónde estoy?   ¿Estoy en Londres? No, es Liverpool con su muelle y su comercio. La ciudad de la que me hablaba mi padre  y donde reveo ahora a mi abuelo caminando entre los pájaros. Hay un fuerte olor a moho y scones recién hechos.
Continúo caminando hasta llegar a una colina. De su cumbre puedo ver un río, el mar, otras tierras, otros tiempos. Estoy ahora en Lisboa. En su Castillo construido por el viento. La ciudad diseñada por poetas, líricos navegantes épicos con brújulas y mapas hechos de sueños.
Cruzo entonces El Atlántico y me entrego a nuevas tierras. Estoy ahora en Salvador de Bahia mirando sus viejas casas atrapadas por el tiempo. Se caen como podridos frutos que a nadie interesan.
Camino un poco más adelante y en Cartagena de las Indias, en su ciudad amurallada, me liberto.   Me pierdo en un montón de colores,  de sus frutas, de sus preciosas piedras. Tengo un brevísimo encuentro con Gabu. Tomamos un poco de ron y hablamos de  novelas y de cuentos.
¿Qué otras tierras puedo visitar? Otras ciudades con sus barrios y su gente. No lo sé. Sin embargo veo ahora que en este viaje en palabras,  los recuerdos, las memorias se convirtieron en adobe y construyeron un lugar. Con sus casas, con sus calles, con sus fuentes y sus parques. Con sus jardines y puentes.
Esta es mi Ciudad Posible donde a veces me acuesto.  Como una mágica alfombra es tejida con hilos sutiles y frágiles: mis recuerdos, unas fotos, mucha nostalgia e historias. 
Esta es mi Ciudad Posible. Mi puerto de llegada. La casa donde habito.

(Para Claudia Blanco que me ensinou a dar os primeiros passos na língua espanhola e para Valéria França que sabe muito bem ensinar a ensinar.)
(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A CIDADE POSSÍVEL


Laura, minha professora de espanhol, nos pediu para escrever um texto sobre uma cidade. Mas ela queria um texto lírico, poético. Afinal estamos em nível avançado. Não temos desculpas. Passamos uma unidade inteira remexendo palavras, visitando autores, principalmente poetas. De Dámaso Alonso a Ángel González. E, é claro, nos encontramos com Lorca. Com eles, percorremos  ruas de diferentes cidades. Segundo Laura, aprendemos. E agora é hora de produzir.

Um texto sobre uma cidade... Lírico... Quase poesia... (Pero no se olviden de las cosas que estudiamos...  Las palabras... Los pronombres... Los participios...).

Laura me pediu para escrever um texto sobre uma cidade. Não tenho vontade de escrevê-lo. Nenhuma vontade.

De que cidade posso eu falar? Rio de Janeiro? Talvez fosse mais fácil. Vivemos aqui, a conhecemos, com seus contrastes e ilusões. Tão maravilhosamente cruel. Tão cruelmente bela. Não. O Rio não. Já muitos falaram sobre o Rio.

Talvez Caracas? Mas tenho falado tanto da cidade nas aulas. Caracas e sua mágica montanha onde guardei tesouros feitos de surpresas e muita felicidade. Não... Caracas também não me servirá.

E, de repente, me vejo cruzando umas ruas estreitas com calçadas de pedra. Estou agora em Roma. E, pouco a pouco, o meu silêncio de turista solitária se perde no burburinho da cidade. Roma é minha cidade. Aberta. Imensa. Com suas ruas e praças que se diluem na História. Roma é feita de monumentos e gente e tráfego e saudade. Fundada por uma loba, tem a alma selvagem.

E depois uma janela. E é através dela que vejo a neblina lá fora. Onde estou? Estou em Londres? Que nada, é Liverpool com seu cais e seu comércio. A cidade de que me falava o meu pai e onde revejo agora meu avô caminhando entre os pássaros. Há um forte cheiro de mofo e de scones recém assados.

Continuo a caminhar até chegar a uma colina. De seu topo posso ver um rio, o mar, outras terras, outros tempos. Estou agora em Lisboa. Em seu Castelo construído pelo vento. Cidade desenhada por poetas, líricos navegantes épicos com bússolas e mapas entre os dedos.

Cruzo, então, o Atlântico e me entrego a novas terras. Estou agora na Bahia, em Salvador, e observo os seus solares encurralados pelo tempo. Tombam como frutos podres que a ninguém interessam.

Caminho um pouco mais adiante e em Cartagena de las Indias, em sua cidade amuralhada, me liberto. Me perco em um monte de cores, suas frutas, suas preciosas pedras. Tenho um brevíssimo encontro com Gabu. Tomamos um trago e falamos de romances e novelas.

Que outras terras posso visitar? Outras cidades com seus bairros e sua gente. Não sei. No entanto, percebo agora que nesta viagem feita em palavras, as lembranças, as memórias se converteram em cimento e construíram um lugar. Com suas casas e ruas, com suas fontes e parques. Com seus jardins e suas pontes.

Esta é a minha Cidade Possível onde às vezes me aconchego. Como um mágico tapete é tecido com fios frágeis e sutis: minhas recordações, algumas fotos, muitas saudades e muitas histórias.

Esta é minha Cidade Possível. O meu porto de chegada. Minha morada e lugar.

(Será que convence a professora? Não era bem isso que ela queria! Não se preocupem, entreguei o texto em espanhol. Fico imaginando que nota vou tirar.)

(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)