sexta-feira, 26 de agosto de 2011

UM CD


Por onde começar este texto? Pelo roubo do LP? Pela saudade esquecida no tempo nesses quase 40 anos passados? Pelo olhar de surpresa da vendedora menina, não mais que 18 anos, diante de mim e da minha surpresa diante do CD? Por onde começar?

Para não soar pretensiosa, decido começar pelo começo.


Era inicio da década de 70 e eu adolescia cheia de curiosidades. Queria ser poeta, mudar o mundo, viajar e escrever. Gostava das palavras, de ouví-las, brincar com elas em minhas noites de insônia. Juntá-las em quebra-cabeças. Me encantava dar volume e forma ao som. Palavras...


Em uma visita à casa de meu tio, ouvi pela primeira vez o LP. Tio Benny tinha acabado de chegar de Portugal e lá o havia ganhado de presente. 

O LP... Vinicius em casa de Amália. Um sarau, um encontro de amigos, cantores, poetas em plena Lisboa ao final da década de 60.

Tio Benny colocou o disco para mamãe ouvir. Thereza, você vai gostar. Houve um grande silêncio na sala... Não sei se todos queriam ouvir o LP, mas se calaram. (Naquele tempo, a gente se calava para deixar o outro falar).

Logo na primeira faixa (hoje em dia se diz track), David Mourão-Ferreira nos convida a participar da cena. É 19 de dezembro de 1968. Vinicius de Moraes segue amanhã para Roma. Estão todos em casa de Amália Rodrigues. David chega um pouco atrasado e "em bicos de pés" sobe as escadas. Ao longe, ouve aplausos... Amália havia acabado de cantar.


As faixas iam passando... Em certos momentos, alguém fazia um comentário. Risos, por causa do sotaque forte lusitano. Fados e poemas se sucedendo.

Fui me transportando. Me perdendo entre guitarras e canções. Queria estar lá.

Naquela tarde, ouvi pela primeira vez A Balada do Mangue, um dos poemas de Vinicius de que mais gosto. A Balada dita por ele. Podia ouvi-lo respirar. Pobres flores gonocócicas / Que à noite despetalais / As vossas pétalas tóxicas! ...

 


Quando terminou, Tio Benny sugeriu que mamãe levasse o disco emprestado. Depois você me traz.  Minha mãe relutou, agradecendo. E eu pensando, aceita, aceita... Por sorte ela aceitou e Tio Benny nunca mais viu seu LP. 


Adolesci entre palavras. Livros, conversas, debates. E o LP lá, como parte disso tudo. Companheiro fiel. Com ele aprendi muito do fazer poético. Jogar com as palavras. Brincar com elas. Que fazer poesia é ato lúdico como descer de escorrega. Se deixe levar. É andar de balanço. Cada vez mais alto, até voar... Ou cair e machucar a testa. Mas há que arriscar.

Eu chegava em casa da escola. Todo mundo trabalhando e eu lá, sozinha... 

Chegava, botava o disco na vitrola... Espera, naquela época já se dizia SOM... E o ouvia. Ouvia. Ouvia. Ouvia. Com o passar do tempo, os versos e fados começaram a ser acompanhados por guitarras e chiados. Os LPs arranhavam... Mas não fazia mal.

Fui me fazendo poeta entre livros, discos, chiados, encontros, madrugadas... Gostava de recitar poemas em voz alta. As palavras ecoando em meu cérebro...

Escrevia... E era final da década de 70. Naquele tempo, as palavras podiam provocar ruídos.

E o LP me avisava e me defendia em texto de Natália Correa: "Senhores jurados sou um poeta [...] Sou um vestíbulo do impossível um lápis [...] Sou um instantâneo das coisas / apanhadas em delito de perdão...



Depois... Eu estava tão entretida em viver que nem vi o tempo passando. Foram livros, festivais, shows em bares, poesia nas praças, faculdade, viagens, trabalho, projetos, congressos, paixões, perdas, encontros, teses, mudanças de casas.

Um dia, me dei conta que o LP havia sumido. Onde estaria? Nunca mais o encontrei. Nem na minha casa, nem nas lojas.

Dele, ficou apenas o que eu trazia na memória e aquela sensação boa de uma época que não existia mais. Eu tinha mudado... de casas... de vida... de sonhos.



Foram precisos quase 40 anos para que eu, às vésperas de meu aniversário, por um acaso, em uma tarde chuvosa depois de um passeio pela Floresta da Tijuca, fosse almoçar no Fashion Mall. Pedi às amigas que me esperassem um pouco que eu queria dar uma olhada no quiosque da Biscoito Fino. Elas ficaram conversando e eu bisbilhotando CDs. (Nota: Ainda gosto de comprar CDs. Baixar música continua sendo um ato por demais transcendental para mim.)

Olhei, olhei e as chamei para ir embora. Soraya e Eulália protestaram. Você ainda não viu tudo. Volta lá. Já vi. Podemos ir. Falta aquela parte, do outro lado. Tá bem... Tá bem... E, então voltei.

Na primeira olhada, um susto. O olho bateu na capa como em zoon.



Não pode ser... A vendedora, uma menina de seus 18 anos, me olhou assustada. Eu sentia as minhas bochechas vermelhas. Sofro de flush. Fico super vermelha quando me emociono. Que foi, senhora?

Este CD, eu não sei se é ele, mas eu o procuro há mais de 30 anos. Se for, é um presente de aniversário para mim. Você sabe quem é Amália Rodrigues? Ela sorriu quase se desculpando. Mas Vinicius você conhece? Conheço sim. Estudei na escola.

Ela entendeu minha emoção. Vou botar para a senhora... Tomara que seja o CD. 

E então, o som saiu alto e claro, sem chiados... Dezenove de dezembro de 1968... Vinicius parte amanhã para Roma... 

E a minha adolescência me invadiu em "bicos de pés".

A vendedora me fez o pacote de presente mais lindo que podia. Sorria muito para mim, enquanto eu continuava vermelha e sem saber direito o que falar.

Me entregou o pacote e me disse: Seu presente de aniversário.

Agradeci...



(in pblower-vistadelvila.blogspot.com)

5 comentários:

Elza Martins disse...

De fato "a vida vem em ondas, como um mar". E o CD foi um onda que lhe pegou desprevinida e lhe encheu de emoção.
Como dizia minha avó "é preciso olhar com olhos de ver". Será que você viu o CD ou será que ele,ao lhe reconhecer, se fez ser visto? Fica a pergunta.
Beijos.

Alzira Willcox disse...

Seu post me emocionou porque trata de resgate afetivo. Isso me emociona sempre; são as pequenas/grandes coisas que nos ajudam a viver. E o inesperado trouxe-o, o que foi ainda melhor. Belo presente você recebeu e nós também. Curta muito o seu cd.

Celina disse...

Em lágrimas deliciosas de emoção (como na nossa adolescencia)lendo esse presente (o presente foi para você, mas você compartilhou escrevendo para nós). Ticha, só você, sempre você me emociona, desse jeito e de tantos outros. Eu lembro que eu dizia... que se eu não fosse grande coisa, eu seria sua prima. Obrigada por existir e ser minha primoca querida.

Dayse Taveira disse...

Querida Patricia,
Acho que ainda não sou boa o suficiente nesses assuntos de internet e sumiu o comentário que eu escrevi. Não me dou por vencida. Meu "fuxico" no facebook trouxe uma grata surpresa e me fez viajar no tempo. Primeiro, encontrá-la, foi muito legal. Depois, a história do LP, que me fez lembrar de como eu passei a minha adolescência ouvindo fados, tangos e boleros, graças ao grande fadista Manuel Taveira, meu pai. Muito obrigada pela linda história e por me proporcionar essa curta viagem a um tempo muito bom! BEIJOS!!!

pblower disse...

Dayse,

Benvinda ao blog e que possamos trocar muitas mais lembranças neste espaço. beijocas, pat